Rui Mariani começou como trapezista no circo que os pais criaram.

entrevista de verão

Rui Mariani: "Fui um escravo dos animais no circo"

Rui Mariani foi o primeiro domador de tigres em Portugal. Depois de anos a ganhar experiência no circo de família, o pai foi palhaço e a mãe trapezista, decidiu montar o seu, o primeiro no país a apresentar números com animais selvagens.


Este texto foi publicado originalmente a 12 de agosto de 2019 e faz parte de uma seleção de entrevistas, realizadas pelo DN durante o último ano, para voltar a ler neste verão.

Já é "mais do que um veterano do circo", é "um dinossauro", diz Rui Mariani, 64 anos. Encontrámo-lo na sua casa na Moita, com um pátio que acolhe todas as outras casas ambulantes com que percorre o país e o mundo durante o ano. Lá dentro, folheia um catálogo de artistas, alguns dos anos 1950, nacionais e internacionais, que marcaram a história do circo em Portugal. Ele próprio foi um deles, quando se tornou o primeiro domador de tigres no país. "Eu era o homem que se atirava às feras. Fiquei conhecido assim." E até fez páginas de revistas com este título.

Nasceu no circo e através dele o circo renasceu também. O que é fantasia para quem procura este espetáculo é uma forma de estar para Rui. E o hábito está no sangue da família, de onde nasceram dois impérios circenses em Portugal: além do seu Circo Mundial Mariani, o Circo Victor Hugo Cardinali (seu primo). Durante dois anos, trocou a tenda por um lugar como diretor artístico no Coliseu do Porto, onde preparava os espetáculos de Natal, mas rapidamente voltou às arenas. "O meu mundo era outro."

O fato de domador, segura-o agora nas mãos. Já não cabe nos braços finos com que exerceu a profissão durante toda a vida. Rui mudou muito desde então. E o circo também.

Criou toda a sua família à imagem do circo. Mas qual é a sua primeira memória deste mundo?

A primeira memória que tenho do circo é de quando o meu pai me vestia e aos meus dois irmãos de palhaços e nos levava para a rua e para cooperativas fazer espetáculos improvisados. Não tínhamos experiência nenhuma, eu tinha apenas 6 anos, mas foi onde aprendi muito do que levei para a vida. Qualquer espaço na rua servia e praticamente todas as pessoas antigas do circo passaram por esta fase. Era a forma de se ganhar a vida. Ganhava para os meus pais.

Que também cresceram no circo, certo?

Sim. A minha mãe era de uma família muito conhecida em Itália, a família Ferroni. O meu avô [materno] era italiano e a minha avó espanhola. Mas os meus pais nasceram em Portugal, a minha mãe no Algarve e o meu pai no Alentejo. Cruzaram-se e apaixonaram-se nas companhias de circo para as quais trabalharam juntos durante anos - ele como um palhaço fabuloso, ela como uma bela trapezista. Era até anormal que um artista de circo não se casasse ou não se juntasse com outro artista. Depois de anos a trabalhar por conta de outrem, decidiram abrir o próprio circo. E nós fizemos parte deste plano.

Como trapezistas...

Exatamente. As pessoas do circo eram polivalentes, mais do que conseguem ser agora. Hoje, dedicam-se a números específicos, aperfeiçoam-no e não passam dali. Na altura em que comecei, tínhamos todos de fazer variadíssimas coisas. Embora eu soubesse que não era aquilo que eu queria fazer, ser palhaço. Então, com 14 anos, lembro-me, comecei a treinar trapézio num armazém de cortiça antigo e abandonado na Cova da Piedade. Ia com os meus irmãos. Já na altura víamos espetáculos de trapézio em Lisboa, e aquilo fascinava-nos. Então, trabalhámos para ser trapezistas e tornámo-nos os primeiros trapezistas voadores portugueses. Fomos fazer espetáculos em Espanha, Itália, Angola, Moçambique, por aí. E em 1971, quando regressámos de Angola, montámos nós um circo de grandes dimensões. Era mais difícil arriscar desta forma na altura. Só tirar a carta de condução para conduzir camiões para carregar tudo era algo que não estava ao alcance da maioria. O meu pai comprou o Circo Texas, um dos mais famosos na altura, quando ainda estava a funcionar em Faro. Abrimo-lo logo no ano a seguir ao nosso regresso.

Quando é que os animais selvagens entraram na sua vida?

Foi pouco depois. Tudo o que é artista circense no nosso país trabalhou para o meu pai, a maioria para mim também. Um dos contratados por ele na altura era um domador de elefantes - três animais enormes de quatro toneladas cada, que comiam dez fardos de feno por dia. O meu pai queria mostrar em Portugal algo que nunca tinha sido visto por cá, porque não havia nenhum circo com animais de grande porte - talvez nem cães.

Chamou o Luigi Gerardi, um domador italiano fantástico. Ficou connosco durante um ano inteiro, a domar elefantes e leões. E dávamo-nos muito bem. Ele chamava-me para comer esparguete verdadeiramente italiana, conversávamos muito e, um dia, disse-me 'tu é que devias treinar os leões'. Estava parado do trapézio por força de uma hérnia discal que ganhei com 24 anos. Então, aceitei o desafio. Comecei a treinar sem os animais, a imaginar que eles estavam sentados em cima das mesas, a repetir apenas os movimentos que deveria fazer junto deles com as varetas. E dominar este instrumento é muito importante. São como as batutas de um maestro - uma tem carne na ponta, para cativar o animal, outra serve para tocar nele para endireitar a postura. Depois comecei os espetáculos, com um macho e uma fêmea. Um número em que ela saltava por cima de mim através de um arco em fogo. Estes aqui comiam 50 contos de carne por mês. Digo-lhe: fui um escravo dos animais do circo, dos meus leões principalmente. Levantava-me de manhã bem cedo para ir comprar carne ao quilo à feira, aos ciganos. Na altura ainda se vendia assim. Outras vezes ia ali ao Virgílio, em Loures, que era quem fornecia também para o Jardim Zoológico de Lisboa. Depois dos leões passei rapidamente para os tigres.

Sempre a trabalhar no circo dos seus pais?

Não, não. Trabalhei com os meus pais até aos 30 anos e depois fui procurar trabalho como artista autónomo. Corri Espanha, Itália, Bélgica, Polónia, Canárias, Marrocos, várias terras. E em Marrocos foi mesmo onde fiz o meu último contrato por conta de outrem, em 1993, como domador de leões. Em 1994, abri o meu próprio circo.

E o primeiro teste foi em Carnaxide...

E a primeira terra que percorremos foi Carnaxide, sim. Mas aquilo não correu muito bem. Não tínhamos feito publicidade, porque não tínhamos essa experiência. O que tínhamos era uma vontade tremenda de mostrar aos portugueses que somos capazes de fazer muito com pouco e que os nossos artistas eram fabulosos. E mostrámos. Só com o dinheiro das bilheteiras, fizemos maravilhas, espetáculos monumentais. Ainda para mais, estávamos a começar numa altura em que o país começava a abrir a sua mentalidade.

Como era fazer circo na altura?

Oh, era muito diferente. E começa logo na preparação precisa para o montar. Por exemplo, naquele tempo bastava ir sondar junto dos miúdos das terras em que terrenos é que os circos costumavam ser montados e depois pedir permissão informalmente às autarquias para fazermos lá o nosso espetáculo. Agora, para podermos montar o circo, temos de preencher uma montanha de papéis em cada sítio que percorremos, que vão para apreciação e, passados 15 dias, semanas e semanas até, o pedido é indeferido. E pedidos indeferidos é o que está a acontecer com mais frequência. Tive a oportunidade de ver os tempos de glória do circo. Lembro-me dos espetáculos no Palácio de Cristal, no Porto, no Carnaval, onde trabalhei como trapezista e domador. Nessa altura, o circo era um conceito muito diferente. As pessoas iam ver o espetáculo, mas depois a pista enchia-se com todos a dançar pela noite dentro.

Depois de anos nas arenas, decidiu passar o legado para o seu filho. Porquê?

Entretanto, tive um problema nas cordas vocais e tive de ser operado. E foi na altura que passei o trabalho ao meu filho Mário, porque trabalhar com animais sem voz não dava, eles não nos respeitam. Eu parei há cinco anos.

E o seu filho Mário também, porque os circos já não incluem animais nos espetáculos...

Sim, tivemos de os mandar para reservas naturais. Mas tenho muitas saudades dos meus animais, embora já me tenham pregado grandes sustos. Tenho esta mão cheia de mazelas e de marcas dos pontos que levei, das fêmeas com crias ou de alguns machos em época de acasalamento. Faz parte do risco. Mas se agora o governo dissesse "olhem, foi tudo um mal-entendido, podem voltar a ter animais", eu corria para os ir buscar. Sou um revoltado com isto, porque passei por muitos outros países em que o apoio a esta arte é diferente. Os nossos governantes estão a leste do que é o circo.

O circo perdeu valor sem os animais?

Um cliente fiel do circo procura o circo, em primeiro lugar, pelos animais. Os animais são importantes no circo, porque educam. Uma vez, estava a falar com o brasileiro que viu o meu circo com animais e ficou fascinado com aquilo. "Como é que você tem tantos animais destes aqui? Lá no Brasil não temos nada disto", disse-me ele. Fiquei pasmado. Um outro dia estive numa terra, em Arcos de Valdevez, onde nos tinham pedido para fazermos um espetáculo para as crianças de uma escola. Não era habitual fazermos, porque o gasto não compensa para cem crianças. Mas fizemos contas e lá se preparou um espetáculo, com cerca de 300 crianças a mais. No final, um professor veio ter comigo e pediu para me abraçar, enquanto me agradecia muito. Disse-me: "Muito obrigada. Porque estas crianças que estão aqui nunca viram um palhaço ao vivo, quanto mais um leão." Estes animais têm de passar pela cultura destas crianças, para que elas os conheçam e aprendam a respeitá-los. O circo dá-lhes isso, fá-los ficarem fascinados pelo animal que estão a ver. O que não se conhece, normalmente assusta e é para afugentar. Bem... mas esta é a conversa que nem podemos ter com grande parte das pessoas. Lá surgem os radicalistas a dizer "coitadinhos dos animais, que são tão maltratados". Eu vi, até aqui em Portugal, circos onde os animais eram realmente maltratados. Uma vez, passei por um camião com dois ursos muito magros, claramente sem comer há dias. Mas não se pode pensar que somos todos iguais, porque não somos.

Mas os animais não deveriam viver no seu habitat?

Vamos lá ver: eu percebo que não queiram que o animal seja explorado. Eu compreendo que um tigre tem de andar na selva, mas também que daqui a uns tempos vamos começar a ouvir que o tigre-de-bengala está em vias de extinção. E nós reproduzíamos estes animais. Os mesmos animais que, quando abandonados nestas reservas para onde estão a ser deixados, morrem, por saírem dos ambientes onde sempre estiveram. Não se pensou no que fazer com eles quando se decidiu tirá-los do circo.

Estão parados há quatro meses, apenas dedicados a preparar a época de Natal. O circo está em crise?

Está, claro. O circo é um espetáculo de família e do povo, mas não pode trabalhar barato. Não podemos pedir quatro ou cinco euros por bilhete. É impensável. Só conseguimos criar preços para quem tem algum poder de compra. E, neste momento, em Portugal, é mesmo para os ricos. Antigamente, o circo era para todos, e neste momento é só para alguns. Um casal vai ao circo, são 30 euros. Se levar filhos, vai para os 50, 60 ou mais. Mais um saco de pipocas, porque quase ninguém entra no espetáculo sem pipocas, cinco euros. Mais fotografias com um boneco ou um animal, 20 euros. Uma família que vai ao circo tem de levar cem euros ou mais. E onde é que se tira cem euros de um orçamento de 600 ou 700 mensais? Não é possível. O circo acaba no momento em que isto começa a acontecer. Precisamos de ajuda. Ir para a rua com estes camiões todos é um suicídio. Ganho mais em estar parado do que em ir trabalhar.

Isto acontece talvez porque o circo nunca foi visto como cultura...

Mas o circo é cultura. Temos artistas nos mais variados números. Tenho de contratar coreógrafos para os meus espetáculos. Não é cultura? Para quem nos governa não. Continuamos a ser os parentes pobres da cultura portuguesa.

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