Fátima. A única unidade de cuidados continuados do país para pessoas com demência

Tem o nome de Bento XVI e é a única unidade de cuidados continuados vocacionada para doentes com demência, onde se destaca a doença de Alzheimer. São cerca de 120 vagas que estão sempre lotadas. A maioria dos doentes chega da Grande Lisboa e quando termina o programa de reabilitação, não tem para onde voltar. Manuel Caldas de Almeida, diretor clínico e responsável da União das Misericórdias pela unidade, sonha agora com um Lar ou Residência que dê continuidade ao trabalho iniciado há sete anos.
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É um edifício triangular, amplo, pensado para que quem o habita (mesmo que temporariamente) possa deambular livremente, e sentir que não está preso. A Unidade de Cuidados Continuados (UCC) Bento XVI é a única do país preparada para receber pessoas com demência, sendo que se destaca a doença de Alzheimer.

Manuel Caldas de Almeida, médico e vice-presidente do secretariado nacional da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), proprietária do espaço, em Fátima, chama-lhe "a cereja no topo do bolo" de um projeto mais alargado - o projeto Vidas. "A certa altura nós começámos a perceber que havia muitas pessoas com demência não só na população em geral - são hoje à volta de 200 mil, com tendência a crescer bastante - como também nos nosso lares, nos nossos centros de dia, e até nos apoios domiciliários tínhamos cada vez mais população nesse registo. E não tínhamos respostas organizadas para isso. Porque os lares, na sua maioria, não foram feitos para ter pessoas com demência. E o nosso pessoal não tinha formação".

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Ao princípio, a UMP necessitava de um diagnóstico mais preciso. Com o apoio de duas universidades, estudou a realidade de 25 lares que fossem representativos de todo o território nacional. Um conjunto de psicólogos fez um inquérito que respondesse às dúvidas, auxiliado por dois neurologistas. Desse trabalho foi possível retirar conclusões importantes: a maioria da população dos lares tem mais de 80 anos e cada um dos utentes sofre de duas ou mais doenças crónicas, e cerca de 85% tem dependência física, necessitando de terceiros para fazer a sua higiene ou alimentar-se, por exemplo.

"Isto permite-nos concluir que a população dos lares, hoje, não tem nada a ver com aquela para a qual os lares foram feitos", diz ao DN o responsável da UCC, onde atualmente, por razões de ordem sanitária, estão vedadas as visitas de elementos externos.

Mas nesse estudo, houve um outro dado preocupante: 78% da população dos lares manifestava um défice cognitivo. E desses, 50% tinha demência.

"Esses resultados estiveram na origem de várias exposições aos Ministérios da Saúde e da Segurança Social, a quem nunca ligou nenhuma", lembra Caldas de Almeida, enquanto sublinha que essa realidade veio agora "revelar-se dramática, em tempo de pandemia". "Há anos que vínhamos a alertar para a situação dos lares, para necessidade de terem médico, serviços vários a quem nunca ninguém ligou".

Recuando a 2013. Ainda antes de inaugurar a UCC, a 7 de dezembro, num investimento superior a quatro milhões de euros, era preciso formar todo o pessoal dos lares. Este responsável acredita que hoje o panorama é consideravelmente diferente, depois de levado a cabo o programa Largo - que privilegiou a formação para dirigentes, técnicos e ajudantes de Lar. No caso dos últimos - que se revelam tantas vezes os primeiros, no grau de importância relacional - recorda que está provado internacionalmente que uma boa relação com a pessoa mais próxima "evita, sem farmacologia, as reações secundárias da doença: agitação, agressividade e ansiedade". Foi assim que nasceu a Unidade Bento XVI, respondendo ao apelo antigo das Misericórdias que ansiavam por um lugar "onde tratar os casos mais complicados, e também onde dar formação ao pessoal".

Nos últimos sete anos o caminho faz-se com outro auxílio, no que toca às demências. A UMP sabia que o espaço tinha de ser cuidadosamente cuidado, desde a arquitetura ao design, passando pela decoração. E por isso constituiu uma equipa multidisciplinar, que envolveu uma arquiteta, uma terapeuta ocupacional, uma neuro-psicóloga, entre outras, e daí resultou um espécie de modelo-base que se aconselha como o mínimo, num espaço/lar para pessoas com demência. "A boa notícia é que a maioria dos lares, construídos nos últimos anos, consegue fazer uma adaptação mínima às necessidades das pessoas com demência". De resto, o médico geriatra lembra que é preciso "separar as pessoas com das pessoas sem demência, na fase final". Muitas acabam por ser recebidas na UCC Bento XVI.

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A maioria dos utentes chega da região de Lisboa e Vale do Tejo, uma vez que a unidade está sediada em Fátima, concelho de Ourém, e o distrito de Santarém integra essa administração regional de saúde. Existem 30 vagas para doentes em média duração, e outras 30 em longa duração. Caldas de Almeida explica que têm objetivos diferentes: "a média duração tem um objetivo mais reabilitativo, de neuro-estimulação, de otimizar (do ponto de vista da capacidade funcional e cognitiva) e permitir que as pessoas voltem para casa, para os centros de dia ou apoio domiciliário. Já os de longa duração são, muitas vezes, pessoas com demência muito avançada, que carecem de um programa que inclua a manutenção, conforto.

Manuel Caldas de Almeida confirma que a lotação está quase sempre esgotada, embora sublinhe que "na unidade de média duração temos uma rotação muito agradável: as pessoas entram, fazem o programa de reabilitação, e lá conseguimos que voltem às suas origens". O problema reside, sobretudo, na ocupação da longa duração. "Temos um problema social muito grave. Nós recebemos sobretudo pessoas da Grande Lisboa, e muitas daquelas que os hospitais nos mandam são pessoas com demência, mas também, com isolamento social total. Muitos vivem em quartos alugados, não têm família, e quando lhes acontece partir uma perna ou ter um AVC, os hospitais mandam para nós. Só que depois, quando cumprimos o nosso programa, as pessoas não têm para onde ir". E por isso, o sonho da direção passa agora por "construir um Lar, ou uma unidade residencial, vocacionado para acolher essas pessoas com demência".

Ainda assim, Caldas de Almeida acredita que a maioria dos lares pertencentes às Misericórdias portuguesas já fizeram esse processo de adaptação nos espaços, e uma grande percentagem dos trabalhadores já tem formação na área. "Mas estamos ainda longe do desejável, que é ter toda a gente com formação".

Vocacionada para as demências, a Unidade de Cuidados Continuados Bento XVI destina-se a receber pessoas que, independentemente da idade, se encontrem em situação de dependência e necessitem de cuidados de saúde especializados.

Integrada na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), a Unidade é dotada de competências ambientais, profissionais, clínicas e terapêuticas próprias tendo como finalidade ser "um modelo de referência na área de cuidados continuados para utentes com defeito cognitivo ou demência". Conta dois médicos (incluindo Caldas de Almeida como diretor clínico), sendo um deles neurologista. A direção técnica está a cargo de Catarina Cerqueira, que coordena todo o trabalho em Fátima.

"A Unidade Bento XVI aposta numa política de qualidade centrada no utente, considerando as suas necessidades pessoais, físicas, psíquicas e morais, numa abordagem multidisciplinar e de proximidade, com vista à promoção do bem-estar e da autonomia, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida da pessoa com defeito cognitivo ou demência e sua família", destaca a carta de princípios.

A União das Misericórdias tem neste momento em mãos um projeto que conta por na rua até final do ano. Chama-se "lar do futuro - envelhecer em Portugal". "A ideia é, perante tudo isto que aconteceu com a pandemia, sabermos o que deve ser o Lar, para dar resposta a todas essas necessidades. Se já sabemos que os lares não estão desenhados para quem lá está, vamos ver então quem lá está e como devem ser os lares", enfatiza o vice-presidente da UMP.

As Misericórdias conseguiram entretanto um novo financiamento, para o ano de 2020/21, para novo pacote de formação - mas a pandemia veio atrasar esse processo.

"Se pensarmos além disso que aos 65 anos 5% da população tem demência e que aos 85 isso acontece com quase 30%. Tendo aumentado muito o número de pessoas com mais de 80 anos, aumenta muito o número de pessoas com demência". E para esses, há apenas uma única unidade de cuidados continuados diferenciada, em todo o universo nacional.

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