Exigir registo criminal limpo a um segurança é inconstitucional

Tribunal considera que nenhuma pena pode implicar a perda de direitos profissionais e declara a inconstitucionalidade da norma da lei da segurança privada por abranger todos os crimes.
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O requisito de não ter nenhuma condenação por um crime doloso para que seja concedida a licença a uma pessoa para o exercício da segurança privada foi declarado inconstitucional. A decisão foi tomada em plenário pelo Tribunal Constitucional, em acórdão datado de 4 de julho. Os juízes consideram que a norma em causa, da Lei 34/2013, do exercício da segurança privada, viola a Constituição, no seu artigo 30.º, n.º 4, em que fica estabelecido que "nenhuma pena implica a perda de direitos civis, profissionais ou políticos".

Os conselheiros, que votaram por unanimidade, apesar de votos de vencidos pela argumentação, consideram que o Estado até tem legitimidade para limitar o acesso à profissão com base em determinados crimes cometidos, mas não o pode fazer assim de forma abstrata. Dão o exemplo de que, com esta norma em vigor, um condenado por um crime fiscal não pode exercer na segurança privada e não existe nenhuma conexão, advertem, entre as duas situações.

Esta norma foi incluída em 2013 na lei, com Miguel Macedo como ministro da Administração Interna, e deu um caráter geral e abstrato a todas as condenações enquanto a redação da lei anterior, a 35/2004, definia como requisito não ter sido condenado, "por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso contra a vida, a integridade física ou a reserva da vida privada, contra o património, de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, contra a ordem e a tranquilidade públicas, de resistência ou desobediência à autoridade pública, de detenção ilegal de armas ou por qualquer outro crime doloso com pena de prisão superior a três anos, sem prejuízo de reabilitação judicial".

Pedida pela Provedoria de Justiça

A questão foi levantada pela Provedoria de Justiça que solicitou ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade desta norma que integra a Lei 34/2013. A norma consta no artigo 22 da lei, que se refere aos requisitos e incompatibilidades para o exercício da atividade de segurança privada. Diz, na alínea d) desse artigo, que um requisito é "não ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso previsto no Código Penal e demais legislação penal". Isto aplica-se, segundo a lei, a administradores de empresas de segurança e a pessoal de vigilância, diretor de segurança, responsável pelos serviços de autoproteção e formadores de segurança privada.

O TC vem agora dizer que esta norma é inconstitucional e a principal base de argumentação dos juízes conselheiros é o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, que estabelece que "nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos".

O que une taxistas, guardas-noturnos e Ferreira Torres?

De resto, recordam os juízes, o TC já apreciou no passado situações semelhantes. Aconteceu no caso dos taxistas, com o acórdão 154/2004, em que o acesso à profissão de motorista de táxi era condicionado ao facto, na lei em vigor na altura, de serem consideradas "não idóneas, durante um período de três anos após o cumprimento da pena, as pessoas que tivessem sido condenadas em pena de prisão efetiva igual ou superior a três anos". Em 2004 foi declarada a inconstitucionalidade.

Também no que se refere aos guardas-noturnos, o TC declarou inconstitucional o regulamento da Câmara de Lisboa, em 2001, em que se "estabelecia como requisito de admissão a concurso para a atribuição de licença de exercício da atividade de guarda-noturno a inexistência de condenação, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso".

Até a nível político já houve acórdãos. Foi o caso de Avelino Ferreira Torres, cuja candidatura autárquica, em 2009, mereceu contestação por o ex-presidente da Câmara de Marco de Canaveses ter já condenações no seu registo. O TC considerou que seria inconstitucional não se poder candidatar.

Tendo em conta esta jurisprudência, os conselheiros admitem que há legitimidade em adotar medidas legais restritivas no acesso a determinadas profissões. Diz o TC que "não pode deixar de se reconhecer ao Estado o dever de prevenir os excessos e riscos, associados a tal atividade, em especial o uso excessivo ou abusivo de formas de coação privada. Para o efeito, o comportamento anterior, perante os bens que estão em causa no exercício da segurança privada - respeito pela vida e integridade física das pessoas, respeito pela ordem e tranquilidade públicas, respeito pela reserva da intimidade da vida privada e, em geral, pelos direitos e liberdades de terceiros e pelo respetivo património - não deve ser pura e simplesmente desconsiderado".

Crime não é juízo absoluto

No entanto, os conselheiros consideram que a norma não estabelece uma conexão entre o crime que originou a condenação e o exercício de segurança privada. "Veja-se, a título de exemplo, que quem tiver praticado um crime fiscal ou um crime por violação de regras urbanísticas fica impedido de, no futuro, vir a exercer a atividade de segurança privada, sem que, na verdade, seja reconhecível qualquer conexão relevante entre esses crimes e a proteção do interesse coletivo no exercício da função."

Por isso, consideram que "o legislador não limitou a aplicação do requisito legal a um determinado tipo de crimes cuja prática, no seu juízo, revelasse em abstrato uma danosidade social que colocasse em causa o interesse coletivo subjacente a um exercício digno da atividade de segurança privada".

Nova lei "desapareceu"

O governo está desde o ano passado a trabalhar numa nova lei da segurança privada. As situações de violência com seguranças de estabelecimentos de diversão noturna provocou esta necessidade de mudança, sobretudo após o caso de agressões na discoteca Urban Beach. Três dos seguranças envolvidos foram acusados pelo Ministério Público de tentativa de homicídio. Na altura reuniu-se o Conselho de Segurança Privado, órgão consultivo convocado pelo ministro da Administração Interna.

Em junho, Eduardo Cabrita assumiu a "responsabilidade política" pelo atraso em alguns meses do diploma com as alterações à lei da segurança privada, justificando a demora com a necessidade de incorporar novas matérias. O ministro disse que o processo se atrasou porque o governo decidiu que devia "incorporar novas questões "na lei, relacionadas com a violência na noite e com o setor bancário. O titular da pasta da Administração Interna previu que "a partir de 15 de setembro possa ser agendada" a discussão parlamentar da lei da segurança privada.

Rogério Alves, presidente da Associação de Empresas de Segurança, está mais pessimista. "Inexplicavelmente, a discussão acabou. Não sabemos onde para o projeto do governo. Esperemos que esta circunstância de uma norma da lei ser declarada inconstitucional vá acelerar a revisão da lei", disse ao DN. O advogado aponta que a associação "compreende o acórdão". Exemplifica que a lei é demasiado radical: "Se alguém for condenado por injúria ou difamação por ter discutido numa assembleia de freguesia, por exemplo, ficará impedido eternamente de ter atividade na segurança privada". A solução "é pedir à Assembleia da República que legisle a substituição da norma em causa por outra formatada de acordo com a Constituição", isto é, com crimes definidos e não de forma geral.

Rui Silva, presidente da Associação Socioprofissional da Segurança Privada, disse ao DN que este requisito de acesso à profissão "é um pau de dois bicos". Explica que por um lado a associação concorda que devem existir requisitos, por outro aponta que há situações que podem ser injustas. "Se um segurança é apanhado a conduzir com álcool em taxa crime, deve ficar sem a licença?", questiona Rui Silva, apontando que desde 2013 receberam inúmeros pedidos de ajuda de associados confrontados com a iminência de perda de cartão de segurança por terem registo criminal. "O que deve ser feito é o MAI reunir o Conselho de Segurança Privada para que seguranças, empresários, polícias e deputados definam com clareza os requisitos", disse.

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