Estado de Emergência: E se alguém com um ramo de flores lhe perguntar: "Quer uma cerveja?".
Lisboa quase deserta. Restaurantes a reclamarem por mais 30 minutos. Utentes a queixarem-se que suprimiram carreiras. Polícia a vigiar. Foi assim a primeira noite com recolher obrigatório em Lisboa.
O centro da capital lisboeta começou a ficar deserto a partir das 22.00, a hora a que muitos restaurantes fecharam por falta de clientes. Poucas pessoas nas ruas e, depois das 23.00, a acelerar o passo em direção ao metro, ao autocarro, ao barco ou ao comboio. Dizem regressar a casa, se bem que nem todos por motivos de trabalho. E, no meio desta cidade quase fantasma, alguém com um ramo de rosas pergunta: "Quer uma cerveja?".
Relacionados
A pergunta é inusitada. Teoricamente é proibido vender bebidas alcoólicas na rua e em todo o lado depois das 20.00, se não for para acompanhar refeições E quem oferece cerveja percorre as ruas do Bairro Alto com um ramo de rosas. Um olhar mais atento revela que traz, também, um saco de plástico com o que se deduz serem garrafas. Logo, o proprietário da Tasca dos Canários, na Rua do Norte, observa: "Estão a ver? Não podemos ter ninguém no restaurante às 22.30, mas depois, andam para cima e para baixo a vender cervejas".
João Cunha, 55 anos, explora o espaço há 13 anos, abre a partir da tarde, todos os dias menos ao domingo. Nos próximos dois fins de semana fechará também ao sábado, porque as novas regras impedem que esteja aberto depois das 13.00. Não vale a pena, justifica. "Se às 13.00 não podemos ter ninguém, o que é que vamos fazer? Ninguém vem almoçar antes, muito menos ao sábado". Além de que o restaurante é especializado em petiscos.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
As queixas continuam: "Não tivemos ninguém para jantar, passam-se noites sem aparecer ninguém e piorou com as novas regras. Para estarmos sem clientes às 22.30, têm de jantar até às 22:00. Quem é que vem jantar para estar despachado a essa hora", questiona João Cunha, para logo responder: "Ninguém".
Garante que muitos dos restaurantes vizinhos do Bairro Alto têm os mesmos problemas, conta pelos dedos das mãos os clientes que todos tiveram esta segunda-feira à noite. Ele e a mulher, Paula Cunha, 46 anos, estão à entrada do estabelecimento, a que se juntam outros comerciantes da zona. Conversam até ser hora de fechar, às 22.30. O casal é o único a trabalhar na "tasca", o terceiro membro da equipa acabou de ser reformar.
João vive no Bairro Alto há 43 anos, defende que a pandemia veio revelar um problema grave anterior: a debandada de moradores. "Correram com as pessoas todas, não há ninguém. No prédio ao lado do restaurante viviam quatro pessoas, agora vive uma. Os de fora não vêm cá, não temos hipótese".
Ao lado está o restaurante "Limoncello", casa de comida italiana com 11 anos mas que se mudou para a rua há um ano devido às obras na Nova de Almada, onde estavam. Albino Correia, 57 anos, o proprietário, mostra-nos o copo de vinho por acabar numa mesa. Tiveram seis clientes e o último teve de sair à pressa por serem já 22.10. "É horrível, nem as pessoas comem descansadas. Às 22.00 fecha tudo, para garantir que está tudo vazio às 22.30". Ele e o chefe de cozinha, Vasco Pereira, 50 anos, estão sós num espaço que estaria a abarrotar se não fossem as restrições devido ao SARS-Cov-2. Mesmo numa segunda-feira, garante.
O restaurante está aberto à hora do almoço, hora a que funcionam com quem ali trabalha. Muitos foram trabalhar para casa na primeira vaga da pandemia, regressaram de forma alternada, mas voltaram ao teletrabalho com esta segunda vaga. Esta segunda-feira serviram duas mesas, amigos do proprietário.
João Cunha diz a quem decretou o estado de emergência que não seria necessário fecharem, bastava que houvesse fiscalização, mas já que as regras são assim, pede um horário ligeiramente mais alargado.: "Mais meia hora fazia toda a diferença. Fechar às 23.00 é muito diferente de fechar às 22.30, até do ponto de vista psicológico. Os portugueses têm o hábito de jantar tarde e não saem de casa se pensarem que devem estar despachadas às 22.00". Já não abria ao domingo e não vai abrir nos próximos dois sábados.
Portas fechadas antes da hora
Rua acima, a do Diário de Notícias, Patrícia da Conceição, 38 anos, fecha a janela do restaurante Pedra de Sal, poucos minutos passam das 22.00. Ar de desalento: Está muito complicado", atira, acrescentando: "O problema não são os espaços públicos, seguimos todas as regras, o problema é o que se passa em privado, mas nós é que somos prejudicados". Os cartazes que anunciavam caipirinhas, mojitos e sangria a 5 euros o copo, e também bifanas e outras sandes por 2,5 a 3 euros, já foram retirados.
Mais vocacionados para a noite, o Pedra de Sal antecipou o horário de funcionamento para as 12.00, sem sucesso. Pertence ao mesmo dono do Já Disse, que tinha fado ao vivo e que, agora, está inativo.
José Manuel Silva, 68 anos, é o fadista residente, e agora dá apoio ao Pedra de Sal, que tem esplanada. "Está um bocadinho melhor aos fins de semana. Ao almoço, vê-se um ou outro velhote e só ao final da tarde é que volta a ter gente, estrangeiros mas é miudagem, penso que sejam estudantes do Erasmus. Pessoal muito jovem e que vem beber as caipirinhas, os mojitos e a sangria".
43 % das empresas com quebras acima dos 60 %
O último inquérito da AHRESP (Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal) indica que, em outubro, mais de 43% das empresas da restauração registaram quebras acima dos 60 % em igual mês de 2019.
Desde o início da pandemia, 47% das empresas efetuaram despedimentos e 27% reduziram o quadro de pessoal entre 25% e 50%, e 14% reduziram em mais de 50% os postos de trabalho a seu cargo. Cerca de 23% das empresas assumem que não vão conseguir manter todos os postos de trabalho até ao final do ano.
Namorar até às 23:00
Alheios por momentos às dificuldades desta nova realidade, Francisco Serafim, 25 anos, e Maria Inês Teles, namoram aos pés da estátua de Luís de Camões, no largo com o mesmo nome e prometem esgotar todos os segundos até às 23.00, hora do obrigatório recolher. Ela irá para casa de Uber, ele de comboio para Cascais.
Conheceram-se já na pandemia, ela acabou o curso de Comunicação Empresarial e de Relações Públicas, ele é gerente no setor da hotelaria e restauração. "Ainda percebo as restrições durante a semana, mas ao fim de semana não faz sentido nenhum, não faz sentido fechar às 13.00, mais valia dizer para não abrirem. Vai matar o setor, é impossível fazer previsões para seis meses, que é o que se deve fazer", defende Francisco.
Na rua do Alecrim, que liga o Bairro Alto ao Cais do Sodré, fazem-se as contas dos jantares servidos na La Brasserie de l'Entrecôte e que não desiludem, segundo Luís Francisco, chefe de turno. "Servimos 30 jantares, trabalhámos bem, tivemos o mesmo número de almoços, foi uma segunda-feira normal". Agora, 95 % dos clientes são portugueses. Nunca fecham, mas os próximos dois fins de semana são exceções, apenas mantendo o take-away.
Um homem sobe e desce a rua cor-de-rosa agarrado ao telemóvel, é militar e faz tempo para entrar ao serviço às 00.00. É a única pessoa a caminhar por esta rua de bares e discotecas. Estão fechados e o Tokyo mantém os cartazes das atuações ao vivo, as últimas a 14 de março de 2020.
No Cais do Sodré depois das 23.00, as poucas pessoas dirigem-se para os transportes: barco, autocarro, metro ou comboio. Este último meio de transporte é vigiado por uma patrulha de uma dezena de agentes da PSP que perguntam porque é que as pessoas estão a apanhar o comboio, em um ou outro caso tomam notas. Duas horas depois, dizem-nos que a operação está a "decorrer na normalidade".
"Suprimiram carreiras"
Muitas das pessoas regressam a casa depois do trabalho. É o caso de Paulo Cardoso, 62 anos, vigilante, que apanha o 728, do Cais do Sodré em direção à Portela e que vai partir às 00.05.: "Concordo com o recolher obrigatório, mas esqueceram-se que há milhares de pessoas que saem tarde e suprimiram carreiras do autocarro. Apanho o 736 para Odivelas às 23.50, essa carreira não apareceu, e o próximo é às 0.30, estou aqui desde as 23.40, como sempre. Vou ver como me arranjo no 728".
Daniel Oliveira, 23 anos, e Roberto Costa, 27, cozinheiros no mesmo restaurante de comida mexicana e texana, regressam a casa, mas sem pressas. Esperam pelo próximo autocarro para meter a conversa em dia. "A clientela caiu muito, temos take away, mesmo assim caiu muito".
Jéssica Oliveira, 26 anos, é vigilante no Hospital Júlio de Matos, de onde saiu depois das 23.00 e é quase meia-noite quando chega ao Cais do Sodré, com outras 10 pessoas. Ela ainda terá que apanhar o barco para Cacilhas, mora em Almada, onde espera chegar às 00.45.
Almada é também a referência de Patrícia Aguiar, 23 anos, que trabalha num call center, fala português, inglês e romeno. Regressa da visita a uns amigos, esqueceu-se do avançar das horas. Não concorda com o estado de emergência, mas aceita: "Não é por fecharem as coisas que as pessoas obedecem e estão conscientes que têm de ficar em casa. A mim não me afeta, porque estou em teletrabalho, mas há pessoas que afeta muito".
Patrícia é a prova de que nem todos os que andam na rua depois das 23.00 o fazem por motivos profissionais ou situações de urgência. Também é o caso de François Pons, 45 anos, professor de línguas, que mora em Almada e veio entregar uma encomenda a uma amiga em Lisboa. Prepara-se para apanhar o barco para Cacilhas que parte às 23.55, depois irá seguir até casa no metro à superfície.
Vive em Portugal há seis meses, com rendimentos suficientes para vir à aventura e conhecer o país. Não migrou motivado pela pandemia, mas até acha que foi uma boa decisão. "Morava em Toulouse e as coisas lá estão muito complicadas, muito mais gente infetada e mortes. E estou a gostar das pessoas, são simples, não se armam se têm dinheiro, os relacionamentos são mais fáceis."
Taxistas pior que ubers
Joaquim Carlos tem 70 anos e insiste em guiar um táxi há 26. Mudou de emprego aos 44 anos porque a empresa onde trabalhava, a Valentim de Carvalho, faliu. Está na praça do Cais do Sodré, junto à estação dos barcos, que costumava ser uma boa praça.
"As coisas começaram a piorar há um ano quando o Fernando Medina [presidente da Câmara Municipal de Lisboa] mudou a praça para aqui. Antigamente estávamos no largo do Cais do Sodré, onde é o terminal dos autocarros e as saídas do comboio e do metro. Não trabalhávamos com a mesma regularidade a que estávamos acostumados mas íamos fazendo. Veio a pandemia e morreu muito", diz Joaquim Carlos.
Pegou no táxi às 19.30 e recebeu o primeiro serviço às 00.50. Depois de o fazer, irá voltar ao Cais do Sodré, uma vez que o último barco parte às 01.40. "Há pessoas a chegar e pode ser que apareça algum atrasado que o perdeu", explica.
O regresso a casa, que deveria ser às 06.00, vai depender do número de clientes. "Se não aparecer ninguém, regresso mais cedo".
Fernando Martins, 48 anos, há dois anos que meteu o seu carro ao serviço das plataformas digitais. Um carro que é elétrico e que lhe traz vantagens em tempos de retração no negócio. Esta segunda-feira começou às 20.00 e não parou, prevendo que vai continuar a conduzir até às 08.00.
Conta Fernando Martins: "Depois da primeira vaga da pandemia, em finais de junho, começámos a trabalhar melhor, os meses seguintes foram bonzinhos e tem-se mantido dentro das possibilidades. Não estamos a faturar o mesmo que antes da pandemia mas dá para manter. Somos um grupo de seis condutores e não parámos. O que fizemos foi mudar o horário, trabalhávamos de dia e passámos a trabalhar à noite".