E se não cumprir uma promessa? O mais importante é "a peregrinação ao interior de nós"
À hora em que o padre José Nuno começava a falar às poucas dezenas que preenchiam a capelinha das aparições, na noite de Fátima, Teresa Santos fixava-se na TV, para assistir às celebrações. É a primeira vez em seis anos que não está ali junto à imagem de Nossa Senhora, para cumprir uma promessa que é para a vida toda: aos dois anos de idade, diagnosticaram um tumor no olho da filha.
"Retiraram-lhe o olho mas correu tudo bem a partir daí, por isso prometi ir a Fátima todos os anos, a pé, em cada 13 de Maio. Quando veio este vírus e percebi que não podia ir, fiquei muito angustiada. Às vezes tenho a impressão que por causa disso o ano não me vai correr bem", confessa ao DN, ela que habitualmente fazia o caminho integrada num grupo de 30 pessoas, da zona de Viseu (Travassós).
Por todo o país - e por todo o mundo - há milhares de pessoas impedidas de cumprir as promessas. Neste 13 de Maio não há quem acenda velas, nem gente de joelhos (ou de rastos) no corredor que liga a cruz alta à capelinha.
A Igreja (e o Santuário) tem vindo a "descansar" os peregrinos relativamente a essa lacuna. Mas "é difícil gerir isso interiormente", afirma João Mendes, que pela primeira vez iria em peregrinação a pé, cumprir promessa. O bispo de Leiria-Fátima voltou a referi-lo na quinta-feira à tarde, antes do início das celebrações. "Temos que fazer esta peregrinação com o coração", disse.
"Sempre que me falam em promessas, lembro-me da história que um dia o antigo bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, recentemente falecido, me contou. Um dia, em Fátima, deparou-se com uma senhora que, de joelhos, se arrastava a custo para a Capelinha das Aparições. Na tentativa de demovê-la, pois o Evangelho não é a favor desse tipo de promessas, aproximou-se e disse-lhe que Deus não queria aquilo e que ele, bispo, até podia substituir a promessa, por exemplo, pela ajuda a uma obra social. Mas a senhora agradeceu e atirou-lhe: "Vá com Deus, senhor bispo. Não foi a si que eu fiz a promessa."
Por várias vezes o padre (também professor na universidade de Coimbra) tem lembrado esta história. "Eu, pessoalmente, compreendo que, no seu sofrimento -ele há tanto sofrimento no mundo -, as pessoas façam as suas promessas. Mas penso que é preciso dizer que o Evangelho não é de modo nenhum favorável a promessas deste tipo. Porquê? Porque isso ainda implica uma religião pagã, a religião da compra e venda, do negócio com Deus, do "dou para que me dês"", afirma ao DN.
Anselmo Borges - que recentemente em entrevista ao DN admitia ser provável "que os cristãos se sintam abandonados", num tempo em que não podem participar fisicamente nas cerimónias religiosas - lembra que "o Evangelho de Jesus é a religião da graça e da gratuitidade. Deus é Pai-Mãe que dá gratuitamente. A única promessa que Deus quer é a promessa da conversão, para nosso bem e bem de todos".
O padre insiste naquela que é, na sua opinião, "a gigantesca promessa que Deus e Nossa Senhora querem é essa precisamente: a promessa da conversão, para uma nova mentalidade, um coração novo, uma vida nova. Em Portugal, ainda há pelo menos 80% que se confessam católicos. Se todos se convertessem, também no Parlamento, no Governo, nos Tribunais, na Banca, na Igreja, isso teria consequências gigantescas, pois significaria a renovação do País, com uma sociedade mais justa, menos corrupta e, nestes tempos terríveis, inclusive com fome, muito fome, mais solidária".
Como as promessas em Portugal se prendem, de um modo geral, com a ida a Fátima a pé, e que este ano não foi possível, Anselmo Borges sublinha que "o mais importante é esta conversão, que implica também uma peregrinação ao interior de nós, para lá, no mais íntimo, encontrarmos Deus e fazermos a promessa de nos convertermos". Precisamente o título da homilia escolhida por António Marto, bispo de Leiria-Fátima: "peregrinação interior - um olhar renovador e esperançado".
"Já me aconteceu substituir promessas", conta o padre Anselmo. Por exemplo: "pessoas que prometeram ir a pé, mas, entretanto, foram adiando e, agora, com a idade ou alguma doença, não podem ir... Digo-lhes: "Eu assumo a responsabilidade; substitua essa promessa por uma ajuda, na medida das suas possibilidades, a uma pessoa em dificuldade ou a uma instituição de solidariedade social... E fique tranquilo, tranquila, e não pense mais nisso. Vá em paz."
Para memória futura, fica-lhe uma experiência vivida em Fátima, precisamente: "uma vez (nunca me tinha acontecido), vi um padre de joelhos, lá a caminho da Capelinha das Aparições. Disse-me que era chinês e fazia aquilo pelos cristãos da China..."
Um dos maiores grupos - senão o maior - que sempre marca presença no Santuário de Fátima é de Paredes, a norte do país. A Obra do Bem Fazer tinha este ano inscritos "530 pessoas, mais 130 que dão apoio", conta ao DN Luís Almeida, membro da direção da associação há perto de 20 anos. Faz sempre a peregrinação, cuja maioria dos membros vai em promessa. Não é o seu caso.
"Faço-o só por gratidão. Só ofereci promessa uma vez, em 1973, quando vim do Ultramar. Prometi ir agradecer à Sra de Fátima, se voltasse são e salvo". Mas dessa gratidão resultou o voluntariado na Obra do Bem Fazer. Em Paredes, os mais de 500 colocaram velas à janela, como pediu o Santuário. "O resto fica tudo para o próximo ano".