Defesa de Rui Pinto já se pronunciou. Sexta-feira há decisão final da instrução
Esta quinta-feira faz precisamente um ano que Rui Pinto, o fundador do Football Leaks, foi detido na Hungria, ao abrigo de um Mandado de Detenção Europeu. Esta sexta-feira o hacker conhece a decisão instrutória, depois da juíza Cláudia Pina ter adiado a leitura, marcada para o dia 13 de janeiro, após ter procedido a uma "alteração da qualificação jurídica" dos crimes.
As defesas tiveram 48 horas para se pronunciarem - o tempo "estritamente necessário" exigido por lei, e que foi cumprido, segundo fonte próxima do processo. Uma luta contra o relógio, uma vez que no dia 22, não existindo decisão instrutória, Rui Pinto poderia sair em liberdade, ou excederia o limite da sua prisão preventiva.
O jovem de 31 anos é hoje um dos alvos da Polícia Judiciária, que continua a investigar a atividade do português. Existe uma forte possibilidade de Rui Pinto poder vir a ser acusado de mais crimes. É também conhecido no mundo inteiro, depois de ter criado, em 2015, a plataforma eletrónica que se tornaria conhecida por revelar milhares de documentos confidenciais sobre contratos de jogadores e transferências entre clubes, empresários e fundos de investimento.
Em setembro de 2019, o Ministério Público acusou Rui Pinto de 147 crimes, 75 dos quais de acesso ilegítimo, 70 de violação de correspondência, sete deles agravados, um de sabotagem informática e um de tentativa de extorsão, por aceder aos sistemas informáticos do Sporting, da Doyen, da sociedade de advogados PLMJ, da Federação Portuguesa de Futebol e da Procuradoria-Geral da República, e posterior divulgação de dezenas de documentos confidenciais destas entidades.
As defesas de Rui Pinto e do seu antigo advogado, Aníbal Pinto, este último acusado de intermediar a tentativa de extorsão, de entre 500.000 euros a um milhão de euros, ao fundo de investimento Doyen, requereram a abertura da instrução, fase facultativa em que visa decidir por um juiz de instrução criminal se o processo segue e em que moldes para julgamento.
Cláudia Pina marcou para as 14:00 desta sexta-feira a leitura da decisão instrutória. À entrada do TIC de Lisboa, na segunda-feira, o advogado de Rui Pinto, Francisco Teixeira da Mota, disse que em relação à decisão instrutória "tudo é possível", e que o seu constituinte está "preparado para todas as situações: "ou para ver a acusação diminuída ou a manutenção de todos os crimes pelos quais está acusado".
O Ministério Público (MP) acusou Rui Pinto de 147 crimes, 75 dos quais de acesso ilegítimo, 70 de violação de correspondência, sete deles agravados, um de sabotagem informática e um de tentativa de extorsão, por aceder aos sistemas informáticos do Sporting, da Doyen, da sociedade de advogados PLMJ, da Federação Portuguesa de Futebol e da Procuradoria-Geral da República, e posterior divulgação de dezenas de documentos confidenciais destas entidades. Um elevado número de crimes que foi posteriormente reduzido (ler mais a baixo).
A acusação do MP diz que entre 06 de novembro de 2018 e 07 de janeiro de 2019, o arguido "efetuou um total de 307 acessos" à Procuradoria-Geral da República, e obteve documentos dos processos de Tancos, BES e Operação Marquês, entre outros.
Entre janeiro de 2018 e janeiro de 2019, Rui Pinto consultou mais 12 processos que ainda estão em segredo de justiça.
Em prisão preventiva desde 22 de março de 2019, Rui Pinto, de 30 anos, foi detido na Hungria e entregue às autoridades portuguesas, com base num mandado de detenção europeu, que apenas abrangia os acessos ilegais aos sistemas informáticos do Sporting e da Doyen, mas que depois viria a ser alargado a pedido das autoridades portuguesas.
Rui Pinto é também suspeito de ser o autor do furto dos e-mails do Benfica, em 2017.
A acusação do MP sustenta que, a partir do início de 2015 e até 16 de janeiro de 2019, "o principal arguido muniu-se de conhecimentos técnicos e de equipamentos adequados que lhe permitiram aceder, de forma não autorizada, a sistemas informáticos e a caixas de correio eletrónico de terceiros".
Para o efeito, "instalou, nos seus equipamentos, diversos programas informáticos e ferramentas digitais que lhe permitiam, de forma dissimulada e anonimizada, entrar nos mencionados sistemas informáticos e caixas de correio de terceiros e daí retirar conteúdos".
"[Rui Pinto] não deverá ser pronunciado [levado a julgamento] por 74 crimes de acesso ilegítimo, mas tão só pela pratica de seis crimes de acesso ilegítimo, os que se reportam aos ofendidos Sporting Clube de Portugal, Doyen, PGR, FPF e 'plataforma score'", explicou a juíza de instrução criminal Cláudia Pina.
A juíza de instrução Cláudia Pina justificou a decisão pelo facto de Rui Pinto ter acedido a caixas de correio e não a sistemas informáticos.
O crime de acesso indevido está previsto na Lei da Proteção de Dados Pessoais, no artigo 44, uma lei que foi entretanto foi revogada, mas foi esta versão que a juíza teve em conta uma vez que era aquelas que estava em, vigor na altura dos crimes.
Diz o artigo 44.º da mesma lei: "Quem, sem a devida autorização, por qualquer modo, aceder a dados pessoais cujo acesso lhe está vedado, é punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias", diz o diploma.
No entanto, a pena é agravada "para o dobro dos seus limites" se o acesso "For conseguido através de violação de regras técnicas de segurança; Tiver possibilitado ao agente ou a terceiros o conhecimento de dados pessoais; tiver proporcionado ao agente ou a terceiros, benefício ou vantagem patrimonial". No caso de Rui Pinto, seria uma pena agravada.
Já o crime de acesso ilegítimo está tipificado na Lei do Cibercrime, que no artigo 6.º especifica que "Quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias".
A moldura penal destes dois tipos de crime é igual, apenas difere na questão da agravante. Ao alterar o crime de acesso ilegítimo para acesso indevido, a Juíza Cláudia Pina acabou por "beneficiar" o hacker, que, a ser condenado por estes crimes, terá uma pena mais leve.
Foi precisamente em relação a estes 74 crimes de acesso ilegítimo e aos 63 de violação de correspondência que a defesa de Rui Pinto tentou desmontar a tese da acusação no seu despacho de abertura de instrução - o objetivo nunca foi evitar que o hacker fosse a julgamento, mas reduzir o número de crimes de que está acusado.
O advogado Francisco Teixeira da Mota argumentou que Rui Pinto podia ser acusado, no máximo, de quatro crimes de acesso ilegítimo ao sistema informático da Federação, da PGR, da PLMJ e da Plataforma Score, e de 11 crimes de violação de correspondência. No entender da defesa, haveria "duplicação de crimes".
Em relação aos restantes factos, a juíza sublinhou que o arguido deve ser pronunciado (levado a julgamento) nos termos da acusação do Ministério Público.
"A dimensão de Rui Pinto na sociedade portuguesa não se esgota neste processo. O Rui Pinto é uma pessoa muito corajosa, com um pensamento e um espírito muito positivos", declarou Francisco Teixeira da Mota aos jornalistas, no início desta semana.
O hacker é considerado o fundador do Football Leaks, que revelou milhares de documentos confidenciais relacionados com o mundo do futebol, incluindo o acordo de confidencialidade entre Cristiano Ronaldo e Katherine Mayorga, a mulher que acusou o internacional português de a ter violado, em junho de 2010, em Las Vegas.
"Os fãs têm de perceber que com cada bilhete, cada equipamento que compram e cada subscrição televisiva que fazem, estão a alimentar um sistema extremamente corrupto que funciona apenas para si (...) Há ligas na Europa que são controladas apenas por três ou quatro agentes. Eles fazem transferências contínuas com presidentes de clubes corruptos. O sistema do futebol está a consumir-se a si próprio por dentro", explicou John, o nome fictício que Rui Pinto usava, em entrevista à revista Der Spiegel.
Foi em dezembro de 2016. Na altura, sabia-se muito pouco sobre Rui Pinto, apenas que era português, sabia falar cinco línguas e estava a aprender outras duas - avançava a publicação alemã - e que era uma espécie de prodígio no mundo da informática.
Rui Pinto já tinha estado envolvido em ataques informáticos no passado. Em 2013, terá invadido os sistemas do Caledonian Bank, das Ilhas Caimão, e conseguido a informação suficiente para transferir 300 mil dólares para o Deutsche Bank. Acabou por ser "apanhado" foi detido. Foi nesta altura que terá conhecido o advogado Aníbal Pinto, que o salvou de uma pena maior. De acordo com o jornal Marca, o português teve de pagar uma multa de 100 mil dólares. No entanto, com Aníbal Pinto, está acusado de tentativa de extorsão - a acusação que o levou à prisão preventiva.
Na mesma entrevista à Der Spiegel, revelava mais pormenores da sua vida: considerava-se uma espécie de Robin Hood que divulgava informações sobre a corrupção no futebol.
Aos poucos, soube-se que nascera Praia de Lavadores, em Gaia, que estudara História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, en que se tinha apaixonado por Budapeste quando fez um Erasmus no país. Acabou por ali ficar a viver.
Ao Jornal de Notícias, o pai de Rui Pinto dizia que o filho não poderia vir a Portugal ou "seria preso". "Duvido muito que ele tenha conhecimentos informáticos para fazer o que o acusam. Não é assim tão perito quanto isso. Emigrou há alguns anos. Acho que está a trabalhar como freelancer em informática", era a versão do pai.
"Acusar os whistleblowers de atividades criminosas é um clássico". Foi assim que a antiga eurodeputada Ana Gomes, uma das vozes que se têm levantado para defender Rui Pinto, reagiu às notícias de que o hacker terá acedido ao correio eletrónico de "largas dezenas de ofendidos".
Em junho, Ana Gomes dizia que a ser provado que Rui Pinto ometeu os crimes pelos quais está indiciado, isso não lhe retira o estatuto de denunciante. "Rui Pinto é um whistleblower evidentemente, mesmo que tenha cometido alguns delitos. É um whistleblower e deve ser posto ao serviço do Estado, isto se o Estado quiser ir atrás da grande criminalidade", acrescenta a eurodeputada.
Existe "uma atuação seletiva para ir atrás de uns e encobrir outros", acusava a ex-diplomata.
"Eu não sei se Rui Pinto cometeu delitos. É um assunto que a Justiça tem de apreciar. Aquilo que eu sei é que o Rui Pinto é uma pessoa com excecionais capacidades informáticas que colaborou com a Justiça de vários países. Não entendo como é que a justiça portuguesa não lhe pediu colaboração quando outros [países] o fizeram e por causa disso já recuperaram imenso dinheiro, de fuga ao fisco e branqueamento de capitais", repete Ana Gomes - esta tem sido a sua batalha desde que se soube da informação recolhida por Rui Pinto e após a sua extradição para Portugal.
O 'caso Rui Pinto' não tem paralelo na história recente da justiça portuguesa e provocou um debate internacional sobre o conceito de 'whistleblower'.
Um debate que ganhou ainda mais força com a aprovação no Parlamento Europeu, em abril de 2019, de uma diretiva de proteção aos denunciantes, com vista a abranger pessoas que pretendam alertar para eventuais violações do direito da União Europeia em vários domínios, nomeadamente branqueamento de capitais e fraude fiscal.
O caso chegou a ser tema de artigo de fundo do jonal The Guardian, seguindo a mesma linha que tem sido adotada pela Der Spiegel - que tem criticado duramente a justiça portuguesa por ter extraditado o português e por o manter em prisão preventiva. "Enquanto o homem descrito como o Edward Snowden do futebol aguarda o seu destino (...), agora está à mercê das autoridades portuguesas", lê-se no artigo publicado em abril de 2019.
"Até agora, muitas das leis da União Europeia sobre denúncias protegiam apenas as pessoas que estavam dentro de uma empresa ou organização, mas acho que no futuro podem existir muitos mais a agir como Rui [Pinto] ou como John Doe [dos] Panama Papers, ambos outsiders que tornaram esses dados públicos ", dizia então Rafael Buschmann ao Guardian.
Buschmann é jrnalista da Der Spiegel e foi o primeiro a ter falado com Rui Pinto na Hungria, há cinco anos, além de coautor do livro Football Leaks - Revelando os Negócios Obscuros por Trás do Jogo, lançado em maio de 2018. ao The Guardian.
Um dos advogados do hacker português é o francês William Bourdon, que faz parte do conselho consultivo da The Signals Network, uma fundação franco-americana que "tem representado os notáveis denunciantes Edward Snowden e Antoine Deltour", segundo um comunicado da instituição.
A Signals Network confirmou que Rui Pinto faz parte da Football Leaks "que expôs irregularidades em toda a indústria do futebol e por grandes jogadores" e que está a ter o "apoio legal" da Fundação "que se dedica a apoiar aqueles que correm o risco de expor informações de interesse público".
A Diretora Executiva da The Signals Network, Delphine Halgand-Mishra, sublinhou que as fugas do futebol "foram investigadas por grandes organizações internacionais de media, incluindo a Der Spiegel, Mediapart e outros membros de European Investigative Collaborations (EIC Network), durante vários anos".
A The Signals Network diz ser uma organização sem fins lucrativos franco-americana. Tem como objetivo "defender o interesse público, incentivando a transparência, a prestação de contas, a elaboração de relatórios e a denúncia de irregularidades".