Darknet, bitcoins e droga. Julgamento anulado e processo vira "case study"
A história do esquema de Pedro e Rita, que faziam tráfico de droga real com moeda virtual (bitcoins) foi contada pelo DN, na sequência da condenação de Pedro a seis anos e quatro meses de cadeia.
Contudo, passado um ano da sentença, o Tribunal de Relação de Lisboa (TRL), em resposta a um recurso da defesa, decidiu anular todo o julgamento e, consequentemente, a condenação.
Pedro está em prisão preventiva na cadeia há mais de três anos e esta reviravolta pode libertá-lo em breve, pois seja qual for a nova pena que venha a ser decidida, atingirá o prazo máximo previsto para esta medida no final do mês.
A decisão dos desembargadores do TRL, a que DN teve acesso, dirige duras críticas ao Tribunal de 1ª instância e ao Ministério Público (MP) por se terem recusado a facultar um conjunto de emails do arguido que a defesa entende que são determinantes para provar a inocência de Pedro quanto ao crime de branqueamento - o mais grave, que justificou a prisão preventiva.
"Não tenho conhecimento de qualquer outro caso em que um tribunal tenha proibido o arguido de aceder a prova digital apreendida, essencial para a sua defesa. A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, para além de repor essa legalidade elementar, assinala ainda que a versão sustentada pelo Ministério Público, de que bastava à defesa consultar o processo para aceder à prova, é abundantemente desmentida pelo que resulta dos autos. Trata-se, tanto quanto sei, do primeiro caso em que um Tribunal ordena a repetição de um julgamento por ocultação de prova digital à defesa", sublinha David Silva Ramalho, advogado que defendeu Pedro neste julgamento, juntamente com o seu colega Nuno Igreja Matos - ambos da Morais Leitão e Associados.
Citaçãocitacao"Este processo tornou-se num case study nos meios académicos, por violação flagrante dos direitos de defesa de um arguido"
David Ramalho, professor assistente convidado na Faculdade de Direito de Lisboa, especialista em cibercrime e prova digital, assinala que "este processo tornou-se num case study por violação flagrante dos direitos de defesa de um arguido", acrescentando que "os tribunais têm que perceber que a prova digital é parte do processo e a garantia de defesa do arguido, bem como a descoberta da verdade, depende do acesso e do controlo dessa prova".
Segundo a acusação, deduzida em 2017 pelo então procurador do Departameno Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), João Melo (atual diretor nacional adjunto da Polícia Judiciária), o casal Pedro e Rita montou um esquema perfeito (ou quase), a partir da sua casa em Vila Real, para comprar e vender drogas para todo o mundo. Pedro dominava a informática e todos os esquemas e atalhos da darkweb, a - rede de servidores na internet encriptados utilizados principalmente por organizações criminosas - e Rita era acusada de auxiliá-lo.
Alegava a acusação que, durante pelo menos seis meses, o casal atraiu clientes de todos os cantos do mundo: França, Alemanha, Reino Unido, Suécia, Estados Unidos da América, Austrália, Canadá e Emirados Árabes Unidos estavam entre as dezenas de países para onde vendiam haxixe, canábis e drogas sintéticas.
Quando foram detidos, por tráfico internacional de droga e branqueamento, tinham em casa mais de 30 mil euros e nas contas nas carteiras virtuais (que estavam no computador) tinham amealhado uma pequena fortuna em moeda virtual - 64,28984671 bitcoins, que à taxa de câmbio no momento em que está a ser escrito este artigo alcança quase mais de 1,5 milhões de euros.
Estas bitcoins foram apreendidas pelas autoridades e depositados numa paper wallet da CGD, criada especificamente para as moedas virtuais. E foram, precisamente, elas, o foco de atenção do recurso da defesa para a Relação.
Na fase de inquérito, as diligências do DCIAP tiveram a validação do juiz Carlos Alexandre. Na decisão de instrução, conduzida por Ivo Rosa, caiu o crime de tráfico internacional, por falta de sustentação, para crime de tráfico simples. A sentença condenatória é do ano passado e Rita foi absolvida.
DestaquedestaqueO mais grave, que era o crime de branqueamento, manteve-se e acabou por agravar em ano e meio a pena de Pedro, o suficiente para o manter em prisão preventiva
O crime de branqueamento, manteve-se e acabou por agravar em ano e meio a pena de Pedro, o suficiente para obrigar à aplicação de uma pena efetiva - só o tráfico simples a pena poderia não exceder o limite de que depende a suspensão.
Para provar a inocência de Pedro em relação ao crime de branqueamento, a defesa precisava de aceder à caixa de correio eletrónico de Pedro, apreendida pelas autoridades no âmbito do processo, na qual estarão emails que registam as transações lícitas das bitcoins e que resultam, segundo os advogados, de atividades legais.
Segundo David Silva Ramalho "estas bitcoins são anteriores às datas que a acusação indiciou para o início do tráfico. Mais precisamente, e quanto às transações que a acusação diz serem prova do branqueamento, as bitcoins precediam em três anos o crime de tráfico, ou seja, nada têm a ver com o crime em causa, pois como é óbvio não se pode branquear dinheiro que só se recebeu três anos depois. Até porque, não existe nenhum indício nos autos de que as bitcoins apreendidas tenham qualquer origem ilícita, bastava o MP ter investigado na blockchain".
Para sua surpresa, não lhe foi facultado o acesso a esta caixa de correio eletrónica e foram negados sucessivos requerimentos. O tribunal de 1ª instância chegou a deferir, mas depois quando a defesa ia pedir os emails, estes não lhe eram facultado, alegando perigo de movimentação das bitcoins", o que o TRL entendeu não ser fundamento atendível para impedir acesso aos autos.
"Durante o julgamento, o Tribunal primeiro deferiu, mas deu-nos uma cópia que não tinha os e-mails. Requeremos novamente a cópia e disse-nos para a irmos consultar à PJ. Reclamámos mas fomos. Chegados à PJ não estavam lá os e-mails, a cópia estava nos autos. Requeremos novamente e o tribunal indeferiu o acesso à prova (a mesma que anteriormente tinha deferido). Nessa sequência, arguimos a nulidade do processo. O Tribunal continuou sem nos dar acesso à prova e sem sequer deixar o perito aceder aos e-mails apreendidos. O Arguido viria a ser condenado por ambos os crimes por que vinha acusado, sem nunca ter tido acesso à prova que reputava essencial para a sua Defesa", sintetiza David Ramalho.
O próprio perito, nomeado pelo tribunal, nunca pôde aceder à prova.
"No passado dia 24 de setembro, o TRL anulou o julgamento, ordenou a reabertura da audiência e ao tribunal de 1.ª instância que entregasse à defesa a prova negada, bem como ao perito", completa o advogado.
CitaçãocitacaoOs princípios da publicidade, do contraditório e, em última análise, da igualdade de armas, impõem que o acesso aos elementos de prova, quer por parte da defesa, quer por parte do perito, tenha lugar em fase de julgamento"
"Porque os princípios da publicidade, do contraditório e, em última análise, da igualdade de armas, impõem que o acesso aos elementos de prova, quer por parte da defesa, quer por parte do perito, tenha lugar em fase de julgamento, antes da audiência, possibilitando a prévia análise do necessário relatório complementar da perícia e também que a prestação de declarações, de depoimentos e de esclarecimentos se faça já com conhecimento de toda a informação sonegada", escreveram os desembargadores.
Aquele que foi o primeiro julgamento de branqueamento de bitcoins terá assim de ser repetido, passados três anos e três meses da prisão preventiva de Pedro.
Caso de mantenha a condenação em pena superior a cinco anos, pode requerer saída precária, de que nunca beneficiou por a sentença não ter transitado em julgado, e a liberdade condicional.
Se acabar apenas condenado pelo tráfico simples, terá se ser libertado. Sendo que estes três anos da sua vida na cadeia, podiam não ter acontecido, caso a defesa tivesse tido acesso às ditas provas a tempo do julgamento.