"Conhecemos agora a Neto de Moura também a faceta de homofóbico"
"Não compreendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo e sou contra a adoção de crianças por esses casais. As crianças devem ter um pai e uma mãe,"
Numa entrevista ao Expresso em que se descreve como "uma pessoa normalíssima", mas com "alguns valores que podem não ser os atualmente dominantes", o juiz Neto de Moura assumiu a sua oposição a duas alterações legais recentes -- o impedimento ao casamento entre pessoas do mesmo sexo foi removido em 2009 pelo parlamento e a legalização da adoção por casais do mesmo sexo data de 2016. Declarações que deixaram "arrepiado e assustado" Nuno Pinto, o presidente da organização de defesa dos direitos das pessoas LGBT ILGA-Portugal.
"Demorámos décadas a conseguir a igualdade na lei e quando essa igualdade existe na lei pode demorar outras décadas a que as leis sejam realmente aplicadas nos tribunais. Quem tem o dever de aplicar as leis não pode ser contra elas enquanto profissional, e ficou claro nas decisões que se conhecem que este juiz não consegue separar as suas opiniões da sua prática profissional. Ainda não há elementos para perceber como os tribunais lidam com estas questões, não há sequer uma consciência da necessidade de monitorização. E deixa-nos um alerta muito grande quando alguém como Neto de Moura pode vir a decidir sobre situações que considera que não deviam existir. O que mais me arrepia e assusta nestas declarações é que nós sociedade permitimos que um juiz diga coisas destas e isto passe como uma questão de opinião."
A preocupação do presidente da ILGA é secundada pela deputada bloquista Sandra Cunha. Se a líder do seu partido, Catarina Martins, já reiterou que Neto de Moura não tem condições para ser juiz, e se a correligionária Mariana Mortágua o definiu como "uma ameaça à segurança das mulheres" -- afirmações que de acordo com o que tem sido noticiado lhes poderão vir a valer um processo do magistrado --, Sandra também não poupa nas palavras.
"Conhecemos mais esta faceta de homofóbico ao juiz Neto de Moura. Não me surpreende absolutamente nada num juiz que tem tomado as posições que toma sobre uma coisa tão abjeta como a violência sobre as mulheres. E vejo essas declarações com muita preocupação, porque na secção cível da Relação, para a qual foi transferido, podem vir a passar-lhe pelas mãos processos de regulação de poder paternal. Tem a enorme responsabilidade de decidir sobre a vida das pessoas."
Sublinhando que "os juízes têm obviamente opiniões e podem ser contra aquilo que quiserem, até contra a lei, mas têm de a aplicar", a parlamentar explica porque é que considera as declarações de Neto de Moura são um problema. "Ele já demonstrou que não consegue separar a sua opinião daquilo que é o exercício das suas funções e o facto de fazer estas declarações abertamente, na situação em que está, mostra que se acha acima da lei. É muito grave ele reconhecer publicamente isto depois de ter já dado provas de que não consegue ser imparcial."
Na entrevista, o juiz diz que as feministas têm em relação a si "uma atitude claramente hostil", fala de "uma campanha" de que seria alvo e refere-se às petições assinadas por dezenas de milhar de pessoas a exigir o seu afastamento e à exigência do BE no mesmo sentido como "um ataque à separação de poderes, que é um dos fundamentos do Estado de direito".
Sandra Cunha responde à acusação: "A separação de poderes tem de ser respeitada e o BE sempre a respeitou. É ponto assente que a justiça não pode ser condicionada nem manietada. Mas o poder judicial não pode estar acima da lei. E o que vemos é que este juiz não quer aplicar a lei como ela é, quer aplicar a sua lei, as suas convicções."
Aliás, prossegue, ao contrário das queixas do juiz, que se diz acossado e condicionado, "o facto de não de coibir de dizer alarvidades demonstra que tem a noção de ser intocável."
Aliás, se "a fundamentação das sentenças não pode resvalar para o campo não jurídico, de discussão moral, ideológica, religiosa ou panfletária, em especial quando esteja em causa a defesa de teses manifestamente contrastantes com valores essenciais da Ordem jurídico-constitucional (mormente, de tipo racista, xenófobo, sexista, homofóbico, etc.)", como relevou o juiz conselheiro Mário Morgado, vice-presidente do Conselho Superior de Magistratura, na sua declaração de voto no processo disciplinar de Neto de Moura, que fazer quando tal sucede? Chega uma advertência registada ou outra punição que permita ao juiz continuar em funções? Como certificar que não volta a suceder? E a quem cabe sanar, e como, os danos causados aos intervenientes nos processos e à comunidade?
Como lidar com um juiz que, de acordo com a declaração de voto do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Piçarra, usou em acórdãos"expressões (...) ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas"; que poderiam, segundo Mário Morgado, "no limite assumir relevância jurídico-criminal"; "colocando fortemente em causa a confiança dos cidadãos nos tribunais e o prestígio/credibilidade dos Juízes", e que considera nada ter feito de errado?
Ninguém sabe, crê Sandra Cunha. "Tem de se fazer um debate para saber como resolver situações destas, criar instrumentos. Neto de Moura diz que está a servir de exemplo, mas tem mesmo de servir. Temos de encontrar uma forma de resolver, de prevenir situações destas, olhar bem para aquilo que é a justiça."
Sim, diz o constitucionalista Jorge Reis Novais, mas com cuidado. "O problema colocado por este caso é o da independência do poder judicial. Que é fundamental mas apresenta riscos. Qualquer juiz pode ter opiniões, claro, mas separá-las da aplicação da lei. É manifesto que Neto de Moura não está a fazer isso, está a interpretar a lei à luz das suas convicções pessoais. Este caso demonstra como um juiz se sente à vontade para dizer o que lhe apetece nas decisões, como um juiz pode aplicar as suas ideias e convicções contra a lei." O que para este professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa é inaceitável, naturalmente, e deve ser alvo de intervenção -- "Aquilo que se conseguiu é uma lança em África no sistema português, e seria impensável há uns anos atrás" -- mas tem "receio que seja levado mais além."
Porque, explica, "os juízes devem sentir-se condicionados pela lei, pela Constituição e pelos direitos das pessoas. Mas não podem sentir que é a opinião das pessoas que influencia a carreira deles. Senão estamos entregues às maiorias. O meu receio neste tipo de cedência à opinião maioritária é que isto se vire contra os direitos das minorias. Porque o que é difícil é um juiz ser contra a pressão maioritária."
Uma forma de lidar com juízes e juízos como os de Neto de Moura, então, seria permitir no sistema judicial português aquilo que hoje é impossível: recorrer para o Tribunal Constitucional. "P erante decisões destas, que são altamente violadoras dos direitos fundamentais, deveria ser possível recorrer para o Tribunal Constitucional. O sistema é irracional a este ponto: quando o advogado invoca a inconstitucionalidade de uma norma pode recorrer; mas de decisões ou atos que considera inconstitucionais não se pode recorrer."
A irracionalidade é tal, indigna-se o constitucionalista, que a única instância de recurso de decisões que atentem contra valores fundamentais é o Tribunal Europeu dos Direito Humanos, que implica um esforço económico que não é acessível à maioria das pessoas. "Porque é que ainda não se mudou isto? Os partidos políticos não têm coragem para o fazer, aparentemente. Era simples: pôr no nosso sistema o mesmo que há nos sistemas espanhol e alemão."