Compravam e vendiam armas pela internet. Até cartões falsos da CIA usavam

Um dos cinco arguidos que começaram a ser julgados no Tribunal de Setúbal por tráfico de armas usava cartões de identificação da CIA. Outros dois, pai e filho luso-brasileiros, não compareceram em tribunal

José, 46 anos, indica como profissão ser treinador de ténis. Quando, por suspeitas de tráfico de armas pela internet, a PJ fez buscas às suas residências encontrou, além de várias armas e munições, diversos documentos de identificação que eram falsos. Tinha um crachá da CIA - os serviços secretos americanos -, sete cartões de funcionário da mesma agência norte-americana, um bilhete de identidade do Reino Unido e outros cartões relativos a serviços de segurança. Todos falsos. Usava os documentos para se insinuar junto de terceiros e causar temor, além de encobrir a sua atividade ilícita. É o que diz o Ministério Público. Em Sintra e Lisboa, o arguido tinha uma metralhadora AK47, carabinas automáticas, pistolas, silenciadores, armas brancas e munições.

Este é um dos cinco acusados que esta quinta-feira começaram a ser julgados no Tribunal de Setúbal por tráfico e mediação de armas e detenção ilegal de armas que eram adquiridas à empresa eslovaca AFG Security, recebidas por via postal e, depois de transformadas, vendidas pela internet. A investigação da Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo da PJ e do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) diz que foram exportadas para Portugal inúmeras armas desde 2011, de que se desconhece o volume total. No âmbito deste inquérito, foram identificadas 31 encomendas enviadas, por via postal, pela AFG, as quais são classificadas no nosso país como de classe A, proibidas pela legislação nacional. Entre o armamento apreendido, constam 11 metralhadoras, pistolas de calibre 9mm, cinco armas elétricas (tasers), 49 aerossóis e inúmeras munições.

No caso de José, arguido que se encontra em prisão domiciliária com pulseira eletrónica, foram detetados os movimentos financeiros e informáticos que realizou para adquirir o material e para o vender. Para tal, e de forma a ocultar o crime, usava nomes falsos e recorria a contas bancárias do pai e da companheira para movimentar dinheiro. Não tinha nenhuma conta bancária em seu nome e até respondeu aos investigadores que só adquiria armas por ser entusiasta de airsoft (desporto com armas de réplica).

Este arguido tem um cadastro em que se registam 16 condenações por crimes de burla, falsificação, tráfico de armas, extorsão, tendo cumprido pena de oito anos e três meses de prisão efetiva. Neste processo é acusado de tráfico de armas, detenção ilegal de armas e falsificação de documento.

Pai e filho recebiam em bitcoins

Com um método muito semelhante e até mais industrial atuavam outros dois arguidos. Os luso-brasileiros José e André, pai e filho de 57 e 29 anos, respetivamente, com o segundo a apresentar a profissão de administrador de empresas, são acusados de possuírem uma oficina em Setúbal onde procediam à transformação das armas e à sua posterior comercialização. O pai nunca foi detido e está monte, mas será julgado. O filho foi detido, interrogado mas acabou libertado e ontem não esteve presente no arranque do julgamento.

A acusação refere que faziam do negócio ilegal o seu modo de vida. Utilizam um armazém que funcionava como oficina, onde o pai punha em prática os seus conhecimentos de técnicas de soldadura e outras, com utilização de tornos e prensas, o que lhe permitia trabalhar sem o recurso a terceiros. O mais velho é indicado como o elemento que trabalhava as armas enquanto o filho era o responsável, diz o MP, pela comercialização.

Os investigadores da PJ conseguiram detetar várias vendas efetuadas pelos luso-brasileiros, em 2015. Uma encomenda foi enviada a um alemão, contendo uma metralhadora de fabrico checo. O preço foi de 1830 euros e o negócio foi feito no site de internet utilizado por estes arguidos e por muitos compradores. Recorrendo a nomes e moradas falsas para expedir a mercadoria, e com uma empresa de fachada para encobrir a atividade, André vendeu outra encomenda a um sueco. Em 2016, o destinatário foi um austríaco e a encomenda era de componentes para uma metralhadora, pelas quais foram cobrados 2500 euros. Os pagamentos eram efetuados, muitas vezes, através de moeda virtual, no caso a bitcoin.

Quando André foi detido, a PJ encontrou, na residência e no armazém utilizado, diversas armas, incluindo duas metralhadoras, canos metálicos, munições, documentos como faturas de aquisição de material para armamento, entre outros items, como computadores e telemóveis. Foi detetado que o suspeito utilizava a darkweb, uma área da internet que funciona como um mercado negro e que só é acessível a quem tiver conhecimentos informáticos. No armazém estavam um torno, uma prensa e máquinas de soldar e furar, entre outras ferramentas usadas na transformação de armas. Foi ainda apreendido haxixe e cocaína que André também vendia através da internet.

A investigação diz que André ganhou mais de 14 mil euros nos negócios detetados no ano de 2015, que serão uma pequena parte do total, já que os arguidos dedicavam-se ao tráfico desde, pelo menos, 2012.

Pai e filho estão acusados de tráfico de armas e detenção de armas proibidas enquanto ao mais novo é imputado ainda o crime de tráfico de droga.

Armas usadas no terrorismo

Os outros dois acusados respondem apenas por detenção ilegal de armas já que não as revendiam. Um deles, de 40 anos, da Amadora, desempregado, tinha na sua posse dezenas de armas, muitas delas brancas, reproduções de metralhadoras, carregadores, munições.

O restante arguido é um estudante de 22 anos, residente em Sesimbra, que tinha na sua casa quatro bastões do tipo extensível ou rígido, todos proibidos em Portugal. Além dos crimes de detenção de arma ilegal, responde por tráfico de droga já que a polícia apanhou haxixe nas buscas.

Este processo teve como origem a cooperação internacional entre polícias, com o foco a ser em pessoas que se dedicam à importação de armas da empresa da Eslováquia, a AFG. Os arguidos, excetuando pai e filho, não têm ligação entre si exceto usarem a AFG para adquirirem armas. A empresa em causa opera legalmente na Eslováquia mas em Portugal é ilegal a compra e detenção de armas sem autorização da PSP, através do respetivo licenciamento. É conhecida por ter comprado armamento que sobrou da guerra dos Balcãs e o ter colocado à venda, aproveitando um limbo legal. Coloca à venda metralhadoras desativadas, mas, como diz a acusação dos procuradores do DCIAP João Melo (agora diretor-adjunto da PJ) e Vítor Magalhães, é fácil transformá-las de novo em armas de fogo real. De resto, uma parte das armas da AFG vendidas para Portugal eram de alarme mas foram transformadas em armas de fogo real, como é o caso de muitas das investigadas neste processo, em que se incluem metralhadoras.

A AK47, vulgo kalashnikov, é uma das armas mais comercializada. A AFG foi ligada a ataques terroristas como o ocorrido em Paris, em janeiro de 2015, quando, em paralelo com o ataque ao Charlie Hebdo, Ahmed Coulibaly matou quatro pessoas num supermercado antes de ser abatido pela polícia. A justiça francesa acusou depois um homem de ter vendido armas, AK47, a Coulibaly após as adquirir à empresa eslovaca.

No total deste inquérito do DCIAP, foram 16 os portugueses apanhados na investigação mas 11 deles viram os processos ficarem autónomos por não se verificar o crime de tráfico de armas nem a detenção ilegal implicar uma pena superior a cinco anos de prisão. Dois dos casos acabaram arquivados.

O julgamento prossegue a 4 de fevereiro.

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