As avós da Rua C tiraram o dia para falar de sexo
A Rua C fica lá no fundo do bairro. Fosse angolano e era musseque, brasileiro e era favela, mas é português - então o bairro é de lata. Há casas de madeira, outras de tijolo, os telhados é que são inevitavelmente de zinco. Puxadas de eletricidade à altura da cabeça de um adulto, esgotos a céu aberto a molhar os pés.
Por cima de uma cobertura de chapa alguém plantou um bidé, explicam que é para o teto não voar quando vem ventania. Se o bairro da Jamaica é gueto vertical, este é de uma horizontalidade plena. O Plano Especial de Realojamento que Cavaco Silva criou em 1993 para demolir todas as barracas numa década esqueceu-se de Santa Marta de Corroios, no concelho do Seixal.
No chão da Rua C acenderam-se na manhã de sábado duas fogueiras, para cozinhar o almoço que vai juntar o mulherio. Num está Mamã Isilda a cozer o chispe para a cachupa, na outra Mamã Gabi a deitar farinha na panela, para engrossar o molho do calulu de peixe. Vai ter funge de milho e banana-pão cozida, também. E música, que a festa das mulheres traz dança. Se não vierem homens, dançam umas com as outras.
A festa não é só festa: há distribuição de preservativos, rastreios ao VIH, à sífilis e à hepatite B. O GAT - Grupo de Ativistas em Tratamentos, uma ONG que luta pela qualidade de vidas das pessoas que vivem com VIH ou em risco de o contraírem, identificou aqui uma série de riscos. E então aproveitou um sábado para falar de sexo e de doenças sexualmente transmissíveis. Mas Corroios tem este enclave africano - se é para falar sério, porque não montar as colunas na rua e pôr comida ao lume? O mundo muda-se de barriga cheia. O mundo muda-se com ginga.
"Das 1200 novas infeções de VIH que se registam anualmente em Portugal, 28% são mulheres. Mas, dessas, 46% são imigrantes, nomeadamente africanas", diria mesmo antes de começar o almoço Joana Bettencourt, responsável pelas políticas de luta contra a sida da Delegação Regional de Saúde. Uma plateia de avós ia ouvindo atentamente. A questão também era com elas: "um terço das mulheres contrai o vírus depois dos 50 anos."
E foi então que a conversa começou a animar.
Dia da Mulher, aqui, tem de ser celebrado com uma jorna de atraso. Mamã Gabi, 58, que na verdade se chama Gabriela Neto, explica porquê invocando exemplo próprio. O bairro está cheio de mães solteiras e avós solteiras - em Santa Marta vivem três mil pessoas, quase todas de São Tomé e Príncipe. Como ela, que veio da Roça Madalena em 2001. E quase todas trabalham.
Hoje, sozinha, tem seis bocas para alimentar - quatro dos seis filhos ainda estudam, mais dois netos que guarda ao seu cuidado. Não há vagar para conversas de direitos durante a semana. De segunda a sexta levanta-se às quatro da manhã para fazer limpezas numa empresa em Lisboa. Entra às seis e meia, sai três horas depois. Volta a casa para preparar o almoço e deixar alinhado o jantar - é que tem novo turno das cinco da tarde às oito da noite, para limpar uma fábrica na capital.
Como só trabalha seis horas por dia, não consegue trazer para casa mais de 452 euros. Despesas fixas tem o passe - 52,75. O resto, um pouco menos de 400 euros, tem de alimentar sete. "Ao menos a casa não pago", suspira - que em Santa Marta as habitações erguem-se à força de braços e sem pagamento de licenças.
Mamã ri-se dos que nunca entram nos bairros e vaticinam sentença: "Há muita gente que acha que nós aqui no gueto não trabalhamos, que vivemos de subsídios. Ai é? Quantos portugueses aceitavam meio turno de madrugada e outro meio ao fim do dia, a ganhar o que eu ganho? Lá em São Tomé dizemos que a vida é leve-leve, mas aqui é luta-luta."
Para compensar as falhas da despensa, e pagar os medicamentos, Gabriela aproveitou uma sala grande que tem à entrada de casa para fazer um bar, que nas noites quentes se torna na discoteca do musseque. Tem o nome pintado no cimento da parede com letra tosca - Sagodi Poeira. Aqui ouve-se funaná e música pimba, mas só ao sábado à noite, porque domingo ela pode descansar. Então a mulher vende bebidas, petiscos e oportunidade. É ali que metade dos romances começam em Santa Marta.
Quando chegou, há 18 anos, viu-se com uma mão à frente e outra atrás. Veio com uma das filhas ao abrigo de um programa do ministério da Saúde - a rapariga tinha um tumor na cabeça e precisava de cirurgia urgente. O apoio do Estado de São Tomé, esse, é que nunca chegou. Então desenrascou-se, foi ficando, e mandou vir os miúdos que deixara na linha do equador.
Agora anda de roda dos tachos, a ver o calulu que apura na rua, a correr para a cozinha onde faz arroz e funge. Daí a umas horas, depois de ouvir os técnicos do GAT falarem dos riscos do sexo desprotegido, de aprender que há preservativos femininos, de perceber que se tivesse sabido tudo isto antes a vida podia ter sido mais fácil, Mamã Gabi há de fazer um discurso que arrancará uma ovação de toda a gente. Mas isso fica lá para o fim da história.
Agora é que a coisa vai aquecer. Carlos, o DJ de serviço, já conseguiu ligação elétrica, já tem energia para o computador e as colunas, e já atirou com música latina para o meio do terreiro da rua C. Mas Enrique iglésias ouve-se no bairro todo, o que significa que agora vem Santa Marta desaguar inteira aqui.
Os miúdos são os primeiros a dançar, depois vão as avós, por fim lá vêm as mães. Quando se aproxima um homem, Mamã Isilda - que anda na outra fogueira de roda da cahupa com o neto às costas, parte imediatamente para o ataque: "Tu põe-te fora daqui, vai para casa tomar conta dos filhos, que o dia hoje é das mulheres." Toda a gente ri, um rapaz responde-lhe que ela está mal disposta, "deve ser adepta do Sporting." Mamã não desarma: "A minha equipa é o copo e o prato."
A sua história é comum aqui. Trabalha num hotel, limpa os quartos. Cozinha para os homens todos da casa - são quatro, o marido, o filho e dois netos. E orgulha-se de mostrar o brinco em que tem a casa. Quadros de Nossa Senhora de Fátima por cima das paredes descascadas, uma manta africana a disfarçar um buraco no chão, uma bacia com flores por baixo da abertura que tem no telhado - e por onde a água entra a cântaros sempre que chove.
Dificilmente haverá alguém mais feliz do que ela hoje. O marido vem assistir ao que dizem os técnicos do GAT - e sempre que eles reforçam que as mulheres têm direito a dizer não, têm direito a exigir proteção, têm direito a não acreditar quando alguém lhes diz que os comportamentos são seguros, ela dá-lhe uma cotovelada.
"Temos aqui uma população muito vulnerável, que vive sem condições de salubridade, que tem taxas de natalidade muito elevadas, que não se diagnostica nem se trata", diz Luís Mendão, presidente do GAT. "O primeiro passo é trazer aqui a oportunidade de fazerem testes - porque há gente que tem medo de ir ao centro de saúde, que tem medo de ser expulsa do país se lhe for detetado o VIH, por exemplo."
"Se a Norte do Tejo não faltam associações de luta contra a Sida, unidades móveis que fazem testes rápidos, carrinhas que trazem vacinas a estes grupos mais expostos, na Margem Sul é um verdadeiro deserto", continua Mendão. Só o GAT aparece em Santa Marta de Corroios, quatro vezes por ano. Agora, decidiram que vão contratar uma pessoa daqui como elemento de ligação.
"Informação e conhecimento são o primeiro passo para tornar a população mais saudável", diz o diretor do GAT. Então apostam nestas mulheres para passarem a mensagem, são elas que a associação acredita poderem mudar o paradigma. Convencer maridos e filhos e netos de que o sexo é um assunto bem sério. Enquanto esse processo arrancava num sábado de março, com dança e comida à mistura, as avós de um bairro de lata iam-se levantando das cadeiras entusiasmadas com o novo papel que percebiam ser seu. É como se, ao salvarem os seus, também se salvassem a si próprias.
Alda Pinto, 53, chega atrasada à festa com o neto pela mão. "Raio do miúdo não parava sossegado com a bola", justifica-se às amigas, a quem se põe a distribuir beijos. Explicam-lhe que lá em baixo há uma tenda onde se fazem despistagens ao VIH, ao que ela responde com uma pergunta: "Então já foram lá?" Ninguém foi. "Olha, vou eu primeiro", entregando Diego a uma vizinha e arregaçando as mangas.
Mamã Alda toma sempre a dianteira. Há mais de duas décadas que saiu do bairro, mas ainda aqui regressa todos os sábados - casa, diz ela, continua a ser Santa Marta. Aterrou aqui quando engravidou e o pai a pôs fora de casa, tinha 17 anos. O bairro cuidou dela e ela devolve o carinho todos os fins de semana.
Três filhos, dois netos, mãe e avó solteira a vida toda. É cozinheira, está de baixa porque partiu o joelho quando há uns meses tropeçou durante uma corrida para apanhar o último autocarro que a podia levar a casa. Quando se viu sozinha com três rapazes nos braços, pediu para ficar com turno de almoço e jantar. das dez á meia noite, de segunda a sexta, para ganhar 800 euros. "É difícil, sabe, mas foi assim que consegui comprar uma casa."
As outras Mamãs olham-na com admiração, sim, Alda é uma mulher independente e enfrenta quem lhe faça frente, homem ou mulher. E quando ouve a conversa à sua volta, fala para quem quiser ouvir: "Essa mania que começamos a envelhecer e deixamos de ter sexo é muito atrasada. Não há que ter vergonha", diz agora alto e bom som. "Não há que ter vergonha do que sabe bem. É preciso é saber ter cuidado."
Outras mulheres anuem, e isso dá-lhe força para continuar. "Se a minha mãe fosse viva, se a minha avó fosse viva, se calhar continuavam a ter desejo. E isso tem mal?" Alguns homens afastam-se do furacão. "Estamos a ficar velhas, somos todas avós", diz pegando na mão de Mamã Gabi, "mas não estamos mortas."
Mais tarde, haverá de dizer que, sempre que vai ao centro de saúde, pede preservativos e gel lubrificante. "Uma vez uma enfermeira novinha perguntou-me se era para os meus filhos, e eu respondeu. 'Também é, mas quê, não pode ser para mim?' Há muito preconceito com o sexo quando chegamos a uma certa idade."
Gabriela, a dona da discoteca, pergunta-lhe se é mesmo verdade que entrega preservativos aos filhos. E ela responde que sim, claro que sim. "Olha, se calhar vou ter uns aqui também para as raparigas que vêm ao Sagodi Poeira, a gente tem de ajudar elas a protegerem-se, não é?"
As horas vão passando e a formação termina com uma técnica do GAT ensina a plateia a usar um preservativo feminino. E foi aí que Mamã Gabi tomou a palavra. "Ser mulher é a melhor coisa que existe", disse. "E ser mulher não é ser só mãe nem é ser só mulher de um homem. É tomarmos conta de nós como estamos a fazer hoje. É ter prazer na vida. É ter prazer em tudo."
Nesse momento, as vizinhas da Rua C levantaram-se numa ovação. É que Gabriela nunca levanta a voz, e agora estava a fazê-lo em nome delas todas. Nos gestos simples, de vez em quando, pode ler-se o mundo todo. Foi o que aconteceu este sábado, bem vistas as coisas. Na rua C de um bairro de lata esquecido às portas da capital, um grupo de avós pode bem ter começado uma pequena revolução.