Variantes virais: classificação, grau de perigo e medidas de combate em fase de desconfinamento

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Segundo Albert Einstein "a medida da inteligência é a capacidade de mudar", princípio esse que se aplica ostensivamente aos humanos e, pelo visto, também aos vírus. Assim, as alterações na sequência de aminoácidos habitualmente designadas por mutações no genoma de ácido ribonucleico (ARN ou RNA de ribonucleic acid) do SARS-CoV-2 e que estão na origem das diferentes variantes virais reflectem, inquestionavelmente, a medida da inteligência do vírus responsável pela actual pandemia. Todos os vírus sofrem mutações no seu genoma e o SARS-CoV-2 nunca poderia ser uma exceção, até por ser um vírus a ARN e com uma maior taxa de mutações do que os vírus com genoma a ácido desoxirribonucleico (ADN ou DNA de deoxyribonucleic acid).

Note-se que as mutações até agora detectadas não têm metamorfoseado as propriedades biológicas do SARS-CoV-2 responsáveis pelas características da doença pelo que os novos vírus são considerados variantes do SARS-CoV-2 e não novas estirpes de coronavírus.

Acresce que, segundo o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos da América, entidade que colabora na classificação das referidas variantes, estas podem consistir em (i) variante de interesse (VOI de variant of interest), (ii) variante de preocupação (VOC de variant of concern) e (iii) variante de elevadas consequências (VOHC de variant of high consequence). As VOI apresentam alterações genómicas com potencial de maior transmissibilidade e gravidade, nas VOC já há evidência de maior transmissibilidade, gravidade e/ou de menor eficácia das vacinas e nas VOHC, as de maior gravidade, as medidas de prevenção e controlo apresentam redução significativa da efectividade. Felizmente até hoje ainda não foi detectada nenhuma VOHC.

Até finais de Março de 2021 já tinham sido identificadas mais de 41 mil mutações no SARS-CoV-2, embora só algumas escassas mutações tenham tornado o vírus mais perigoso para a humanidade e tendo a maioria ocorrido na sequência das 3800 bases que codificam a glicoproteína da espícula (spike protein), que inclui o domínio de ligação ao receptor responsável pela ligação do vírus ao receptor ACE2 e entrada na célula humana.

A primeira mutação a desencadear maior preocupação foi a mutação N501Y que corresponde à mudança do aminoácido asparagina (N) pela tirosina (Y) na posição 501 no domínio de ligação ao receptor aumentando a afinidade ao receptor ACE2 e favorecendo a transmissibilidade. Esta mutação está na base da variante britânica ou B.1.1.7, também conhecida por VOC-202012/01, anunciada em Dezembro de 2020 e que apresenta no total 23 mutações com 17 mudanças de aminoácidos (NEJM 2021). Além da variante britânica merecem destaque a variante B.1.351 (501Y.V2), identificada inicialmente na República da África do Sul, e a variante P.1 (B.1.1.28.1), identificada em Manaus, no Brasil. Estas duas variantes de preocupação partilham a mutação E484K (ácido glutâmico (E) por lisina (K) na posição 484) associada à evasão ou maior dificuldade no reconhecimento do vírus pela resposta imunitária natural ou induzida pela vacina. A redução da eficácia da vacina Vaxzevria da AstraZeneca contra a variante sul-africana já foi documentada em artigo publicado em Abril deste ano na principal revista médica, o The New England Journal of Medicine (NEJM).

Ultimamente, uma outra variante identificada na Índia, a B.1.617.2, tem vindo a disseminar-se sobretudo no Reino Unido. Esta variante parece associar-se a uma maior transmissibilidade e dados recentes da Public Health England, o equivalente à nossa Direção-Geral da Saúde, não apontam para uma diminuição significativa da proteção vacinal após o esquema completo com valores de 81% de eficácia, contudo após a primeira toma da vacina a eficácia é de 34%.

As variantes virais serão sempre uma inevitabilidade que nos obriga a rever a eficácia das vacinas e das medidas de prevenção e controlo. E se as vacinas começarem a falhar é sempre reconfortante saber que já estão disponíveis dados sobre o impacto das conhecidas medidas de prevenção e controlo da pandemia. Num estudo publicado no reputado Journal of the American Medical Association (JAMA) e realizado em Taiwan, de Abril a Dezembro de 2020, é possível constatar a importância e o sucesso da combinação de medidas de testagem, isolamento dos casos positivos e quarentena durante 14 dias dos contactos próximos com o uso de máscara facial, higiene das mãos e distanciamento social. Neste país insular do Extremo Oriente com cerca de 23 milhões de habitantes e a escassos 180 quilómetros da República Popular da China, o epicentro da pandemia, com que mantém fortes ligações, a implementação das medidas de prevenção e controlo permitiu debelar a pandemia, numa altura em que as vacinas ainda não estavam disponíveis. De referir que o sucesso destas medidas baseado em planeamento, organização e forte adesão popular dispensou Taiwan de entrar em confinamento durante a pandemia e traduziu-se num número total de casos inferior a 5 mil e menos de 25 óbitos, um valor próximo de um óbito por um milhão de habitantes.

Em última instância, e voltando a citar Einstein, "o verdadeiro sinal de inteligência não é o conhecimento mas a imaginação", restando-nos esperar que o conhecimento adquirido nos permita imaginar e ambicionar a um novo mundo em que as pandemias sejam rapidamente erradicadas ou, idealmente, deixem de ser uma ameaça em resultado de um passado na história da humanidade que conduziu à aprendizagem e à evolução.

Filipe Froes é pneumologista, consultor da DGS, coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Médicos, membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.

Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual/Intellectual Property Office (GPI/IPO) e Associate, CIPIL, University
of Cambridge.

Os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia.

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