Uma reflexão sobre guerra irregular

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A guerra irregular tem sido denominada de muitas maneiras: guerra de guerrilhas, guerra subversiva, guerra revolucionária, insurgência, etc.
Podem encontrar-se algumas nuances em cada uma destas designações. Mas a essência é sempre a mesma: um conflito de baixa intensidade de violência travado à margem do convencional. Para o grande público talvez esta aproximação seja suficiente.

O Exército Português teve a feliz e oportuna iniciativa de realizar há dias um seminário sobre guerra irregular. Foi feliz porque permitiu recuperar para o debate de ideias do presente a publicação O Exército e a Guerra Subversiva, que o Exército editou nos anos 60 do século passado e que constituiu um guia para a ação militar nos teatros de operações de Angola, da Guiné e de Moçambique, ajudando a definir o que tem sido referido como “a maneira portuguesa de fazer a guerra”. Foi oportuna porque o tema tem hoje uma grande atualidade, o que, aliás, valoriza apreciavelmente a doutrina desenvolvida pelo Exército Português há 60 anos. 

Essa doutrina nacional recebeu naturalmente influências, designadamente da doutrina francesa na guerra da Argélia e da doutrina britânica nas guerras da Malásia e do Quénia. 

Mas o produto final foi muito além disso. Materializou-se numa obra em cinco volumes (os famosos cinco “livrinhos de capa azul”) bem conhecidos pelos quadros do Exército que combateram nas guerras africanas nas décadas de 60 e 70 do século XX. 

Foi uma obra que pretendeu ser abrangente e que conseguiu sê-lo, tratando a problemática em toda a sua latitude, dos aspetos gerais aos aspetos particulares nas diversas áreas.

Naturalmente que hoje temos que reconhecer nessa doutrina aspetos fatalmente ligados ao contexto político que o país então vivia e também, passadas seis décadas, aspetos de inevitável datação.

Mas na sua essência continua certeira: uma guerra desse tipo trava-se simultaneamente e de modo convergente nos planos militar, político, económico e social. Pelo menos em todos esses. E quem presumir conduzi-la exclusivamente no plano militar está condenado ao fracasso. Um modelo que hoje diríamos de comprehensive approach, correspondente à atuação convergente, coerente e coordenada de todas as dimensões da ação estratégica e potencialmente mobilizadora de todos os recursos e políticas.

Se à política tem que ser reconhecida primazia, não há relações de preponderância entre nenhuma das outras, tudo dependendo das circunstâncias. 

Uma outra consideração é que essa doutrina continua hoje certeira na grande maioria das orientações de atuação técnica que proporcionou. 
O que não anteviu, ou pelo menos não referiu como risco, foi sobretudo o imobilismo político do regime. Em termos mais diretos, não anteviu que uma das dimensões de ação fundamentais, a política, não só estaria ausente do esforço de guerra como, com essa ausência, fragilizaria e mesmo comprometeria o conjunto das ações e dos esforços levados a cabo.

Naturalmente sem deixar de se compreender a justeza e a inevitabilidade da evolução de pendor independentista que sempre se afirmaria.

As recentes campanhas do Iraque e do Afeganistão uma vez mais evidenciaram como é errado olhar para este tipo de conflitos centrando, senão resumindo, a ação ao domínio militar. Demorou até que, designadamente, os EUA compreendessem que a natureza deste tipo de conflitos obrigar a agir muito para além das armas e a agir em direção às populações locais. Mas entretanto consumiram-se vidas, recursos e expectativas, além de se terem substancialmente enfraquecido as perspetivas de eventual sucesso. 

Com uma perceção mais forte do que no passado, vivemos hoje um tempo de guerras híbridas, em que ao lado do emprego militar convencional (e pondo de lado o nuclear…) se verificam intervenções de altíssima tecnologia, de constante e extenso uso do domínio ciber, ao mesmo tempo de intensas e sistemáticas campanhas de desinformação e de ações de insurgência. Este é o espetro largo das guerras híbridas do presente. Sendo certo que nenhuma guerra híbrida será igual a outra guerra híbrida. 

Desta realidade emerge a necessidade de olhar com atenção para as ações irregulares e para as possíveis respostas que marcarão a insurgência.
Não se trata de nada de novo. Em termos históricos e muito para lá dos conflitos coloniais do passado recente dos impérios europeus e ficando apenas pela Península Ibérica, recordem-se a luta de Viriato e depois de Sertório contra os romanos e a resistência popular em Portugal e Espanha ditando uma muito feroz e particularmente violenta oposição às armas napoleónicas, do que, aliás, resultou o conceito de guerrilha, no sentido lato de “pequena guerra”.

Seria desajustado pretender elaborar nestas páginas sobre os diversos aspetos e minúcias da guerra irregular.

Mas, pensando nas respostas a dar, talvez seja interessante frisar alguns aspetos essenciais: em primeiro lugar, que é um tipo de guerra que tem as pessoas no seu centro, do que decorre o imperativo de ter como objetivo a conquista legítima das vontades e das ideias (hearts and minds) das populações, o que faz salientar a relevância da vertente psicológica; em segundo lugar, que exige a abordagem extensa e abrangente que antes se referiu; em terceiro, que nelas a dimensão humana é mais determinante que o hardware militar; em quarto lugar, que nelas a qualidade é muito mais decisiva que a quantidade; em quinto, mas decisivo lugar, a enorme importância das lideranças em todos os patamares de ação. 

Isto conduz a mais uma reflexão. Na insurgência ou, como se legislou em Portugal, quando se pretende assumir uma forma de resistência generalizada e organizada perante um qualquer agressor, saiba-se que, podendo e devendo haver planos previamente estudados e até ensaiados, podendo e devendo haver pessoas especialmente treinadas, as lideranças brotarão sempre por via natural e espontânea. Isto é, ninguém pode pretender estar pré-identificado para assumir esta ou aquela responsabilidade. As resistências francesa, grega, polaca, holandesa, etc., provaram-no de forma insofismável na oposição à Alemanha nazi durante a 2.ª Guerra Mundial. Também o provam sobejamente os admiráveis 25 anos de resistência timorense aos invasores indonésios. 

Foram fórmulas muito mais de direito individual e coletivo de resistir do que de aplicação de modelos de matriz institucional.

Ou seja, a resistência nacional a um eventual agressor não se decreta. Forja-se no patriotismo, na cidadania e na vontade.

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