Uma questão de confiança

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A invasão russa da Ucrânia transformou-se numa guerra longa, que testa a nossa resiliência política. Putin está, pela guerra híbrida, a testar também a nossa vontade política: até onde estaremos nós, europeus, dispostos a ajudar Kiev a resistir aos crimes de Moscovo?

O líder russo viu fraqueza na saída americana do Afeganistão (final do verão de 2021), depois de já ter sentido tibieza por parte de americanos e europeus, sete anos antes, na anexação da Crimeia de 2014?

O longo braço da espionagem russa está a ter tentáculos políticos, cibernéticos e militares, de modo a explorar fragilidades no flanco leste da Europa - e mesmo em países da Europa central e ocidental. As Eleições Europeias dos próximos dias marcarão teste decisivo quanto à nossa capacidade de nos defendermos dessa guerra híbrida, já plenamente investigada e comprovada (como o recente Caso Pradoura, que gerou buscas no Parlamento Europeu, reforçou).

Sem uma Ucrânia democrática não haverá Europa democrática. Donde, e com o devido respeito por outros temas muito relevantes - como o Pacto das Migrações, a transição digital, a Europa verde ou as ativações dos PRR pós-covid -, o grande e decisivo tema que deveria conduzir as propostas dos candidatos e as escolhas dos eleitores é um e só um: como poderá a UE ser útil para a vitória da Ucrânia na resistência ao invasor russo?

Vladimir Putin não estará nos boletins, mas também é, de algum modo, candidato nestas Europeias. Aposta no maior número possível de eurodeputados (sobretudo de partidos de extrema-direita e direita radical, mas também alguns da extrema-esquerda ou esquerda radical), com posições anti-NATO, anti-Washington e pró-Moscovo. Mesmo que não o assumam por palavras.

Temos de estar atentos aos “putinistas disfarçados”. Não há muitos, mas também os há por cá.

G7, Cimeira da Paz, Cimeira da NATO

Logo depois das Eleições Europeias, haverá em Itália uma Cimeira do G7, decisiva para se avançar para passos mais relevantes na permissão à Ucrânia no uso de armas ocidentais.

Seguir-se-á a Cimeira da Paz na Suíça, grande esforço diplomático da “fórmula da Paz” de Zelensky. Mais de 90 países e organizações já confirmaram apoio - grande parte deles europeus e americanos, mas também muitos africanos e asiáticos -, mas será muito importante que Joe Biden mude de ideias e seja ele mesmo a representar, ao mais alto nível possível (e não por poderes intermédios) os Estados Unidos da América.

Da China certamente não virá Xi Jinping, mas se Pequim se fizer representar no evento de Burgenstock, estará a dar uma oportunidade a Zelensky e uma alfinetada a Putin (que até quer que a China prepare uma espécie de “contra-cimeira” com o plano chinês).

Já em julho, Viktor Órban assumirá a presidência rotativa da UE. Em Washington, os 75 anos da NATO serão assinalados com a mais importante cimeira da Aliança Atlântica em muitas décadas.

Mas, mais ainda do que a adesão à NATO, a grande ameaça a Putin é ver a Ucrânia na UE: porque será a prova de que o tal “buffer state” que ele desejava impor no alargamento da democracia a Leste também entrará no grande espaço democrático.

Possível tempestade perfeita

Muita água correrá debaixo das pontes até essa possível adesão. Os próximos anos - certamente ainda antes de uma eventual concretização da entrada da Ucrânia na UE - podem revelar-nos uma autêntica tempestade perfeita: Trump a regressar à Casa Branca em janeiro de 2025, a AfD a tornar-se decisiva na formação de Governo na Alemanha, Marine Le Pen a tomar o Eliseu em 2027.

Nem será preciso que tudo isso se verifique em simultâneo - mas é quase impossível que nenhum destes riscos às democracias transatlânticas não venham a ocorrer.

Perante tamanhos riscos, convém que não nos distraiamos do essencial. Não foi a Ucrânia que invadiu a Rússia: é a Rússia que está a invadir a Ucrânia. Se tiver sucesso nessa perversão da ordem internacional liberal que dominou as oito décadas posteriores à II Guerra Mundial, o próprio direito de fronteira passará a estar em causa - e um autêntico efeito dominó de devaneios autoritários poderá seguir-se em diversos pontos do globo.

A permissão ocidental de uso de armas por parte da Ucrânia em solo russo, contra alvos militares, foi correta - mas veio tarde. Já não evitou a ofensiva russa em Kharkiv. Esperemos que ainda trave a mais que provável ofensiva russa em Sumy.

Zelensky pede a Biden que deixe a Ucrânia usar armas de longo alcance na Rússia e apela: têm de “acreditar mais em nós”. “Acreditem em nós, nós temos de responder. Eles, os russos, não entendem nada além da força.”

E nós demorámos tempo demais a compreender isso verdadeiramente.

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