Há uma nova ordem mundial? Talvez não esteja ainda constituída institucionalmente, mas, pelo menos, a velha ordem, a “ordem liberal internacional”, acabou. Estaremos muito provavelmente perante um interregno, no limiar de qualquer coisa de mais definitivo.A ordem liberal internacional durou três décadas, entre o colapso da União Soviética e a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022. Isto para termos datas redondas, certificadas por acontecimentos visíveis e assinaláveis.No século XX, o facto inaugural da modernidade tinha sido a grande guerra de 1914-1918, até por ser a causa de um tempo de conflitos ideológicos radicais, a partir da revolução russa de 1917.Foi a revolução russa que gerou esse tempo de confronto: o medo do comunismo, a partir da revolução bolchevique e da consciência das ambições cosmocráticas dessa revolução, levou a uma espécie de estado de excepção para lhe resistir. Começou com o fascismo em Itália, uma aliança de um populismo para-totalitário com as forças conservadoras da monarquia, da burguesia industrial e da Igreja Católica; e, nos anos vinte europeus, na Península Ibérica e na Europa Oriental, surgiram, sob a forma de intervenções militares, nacionalismos autoritários e ditatoriais. Finalmente, e também com o lastro do perigo comunista, Hitler triunfou pela via eleitoralna primeira potência económica e social do continente europeu. Com as consequências conhecidas.A Segunda Guerra teve raízes geopolíticas tradicionais – reivindicações territoriais da Alemanha, maltratada em Versalhes – mas também, a partir da invasão da União Soviética, razões ideológicas radicais, que lhe deram um carácter de “guerra religiosa”. E contra os poderes do Eixo – Alemanha hitleriana, Itália fascista, Japão imperial – houve uma coligação das democracias liberais anglo-saxónicas com a Rússia comunista.Os vencedores repartiram então a Europa, dividida por uma “Cortina de Ferro”, a Leste, nações invadidas e “libertadas” pelos exércitos soviéticos; para cá, as democracias pluripartidárias protegidas por Washington. E na Península Ibérica, os autoritarismos de Franco e Salazar, tolerados pelo seu anticomunismo, que predominou sobre o seu não-democratismo.A Guerra Fria acabou por uma convergência do rearmamento reaganista e da liberalização suicida de Gorbatchev na URSS. E foi o fim do bipolarismo, a que se seguiu a tentativa, inspirada pelos neoconservadores norte-americanos, de exportar para todo o mundo o modelo político e económico da América, sob os auspícios da ordem liberal internacional. Um tempo de unilateralismo.Daqui derivou uma ideologia globalista, servida por aventuras militares, como a segunda guerra do Iraque e as guerras perdidas do Afeganistão. Acima de tudo, a deslocalização da indústria da Euro-Américae o encerramento de dezenas de milhares de unidades industriais nos Estados Unidos e na Europa vieram a ter consequências económicas e sociais para as classes trabalhadoras e para as classes médias que explicam a subida dos partidos nacionais-conservadores e populistas no Ocidente.Ainda não se pode descrever a nova ordem geopolítica, mas tudo indica que será uma ordem de grandes potências, gerindo realisticamente os seus interesses nacionais e procurando um equilíbrio desses interesses nacionais com áreas de influência. Aparentemente sem preocupações de exportação ideológica.O que talvez seja a melhor receita para a paz.Politólogo e escritorO autor escreve de acordo com a antiga ortografia