Kamala Harris, que agora é notícia pelo livro de memórias onde parece fazer alguns ajustes de contas, poderia ter sido notícia bem maior se tivesse sido a primeira mulher presidente dos Estados Unidos. Falhou a eleição em novembro de 2024 por vários fatores, o mais importante deles Donald Trump ter emergido como um candidato ainda mais formidável do que em 2016, quando derrotou Hillary Clinton. Contra Harris, Trump venceu até no voto popular, não apenas no Colégio Eleitoral como contra Clinton. Assim, por duas vezes, o magnata do imobiliário, candidato republicano, impediu que uma mulher se estreasse na Casa Branca. Pelo meio, nas eleições de 2020, perdeu contra Joe Biden, democrata, como Clinton e Harris.No livro, Harris dá a sua versão de como substituiu Biden como candidato já com a campanha em pleno, que critérios levaram à escolha de Tim Walz para vice-presidente, e ainda a sua relação com o Partido Democrata. Também fala do que foi ser vice-presidente de Biden, que a escolheu depois de a ter derrotado nas primárias de 2020, acabando por substitui-lo como candidata por causa da fragilidade da condição física do presidente octogenário. Dificilmente o que escreveu a tornará popular entre as grandes figuras do partido, o que significa que os milhões de dólares que potencialmente vai ganhar com as vendas serão uma compensação para uma reforma política, ela que tem só 60 anos (Trump tem 79, o que significa que apesar do caso de Biden, a idade avançada não é hoje impedimento para se chegar à presidência). Mas será mesmo assim? Será o adeus de Harris?Há várias formas de olhar para a performance eleitoral de Harris. Os detratores dirão que fez fraca figura nas primárias de 2020, que teve menos votos do que Biden, que perdeu para Trump tanto no voto popular como no Colégio Eleitoral. Mas é possível olhar para a mesma realidade com uma perspetiva mais positiva: senadora a cumprir o primeiro mandato, tornou-se a primeira vice-presidente dos Estados Unidos, o seu ticket com Biden continua a ser o mais votado de sempre, os seus 75 milhões de votos em 2024 só perdem para os 77 milhões de Trump nas mesmas eleições e para os 81 milhões de Biden em 2020. E teve mais nove milhões de votos do que Clinton, uma veterana da política americana, senadora, secretária de Estado e durante oito anos primeira-dama com um papel interventivo junto do marido, Bill Clinton. Ouvi falar de Harris pela primeira vez durante uma reportagem na Califórnia em setembro e outubro de 2016, quando esta filha de um jamaicano e de uma indiana se candidatava ao Senado. Fiquei impressionado pela história de vida, mas também achei que eram demasiadas as semelhanças com o percurso de Barack Obama, o primeiro negro na Casa Branca. As histórias surpreendentes de sucesso não se repetem facilmente, e sobretudo não se repetem num tão curto espaço de tempo (Obama foi eleito presidente em 2008, quando cumpria o primeiro mandato como senador pelo Illinois, e reeleito em 2012). Sim, Harris não tem o carisma de Obama, muito menos os seus dotes oratórios. E a América também não era a mesma. Havia menos gente a deslumbrar-se com a biografia da jamaico-indiana do que noutros tempos com o filho de um imigrante queniano e de uma branca do Kansas. Até entre os afro-americanos, eleitorado tradicionalmente incondicional dos candidatos democratas. Mas ninguém dúvida da combatividade de Harris. E numa América tão dividida, tudo é possível, até ganhar um novo carisma.Trump já deve ter desistido de desafiar a Constituição e tentar um terceiro mandato. As apostas sobre quem lhe sucederá como candidato republicano recaem sobre JD Vance. No campo democrata, vários nomes falados são também alguns daqueles que Harris explica ter pensado para a vice-presidência, antes de optar por Walz: diz no livro, intitulado 107 Days (os da sua campanha), que Pete Buttigieg, ex-secretário dos Transportes, foi descartado por ser gay e ela negra, um ticket arriscado. E que Josh Shapiro, governador da Pensilvânia, não foi escolhido por ser demasiado ambicioso. Caiu, pois, mal junto dos democratas algum do conteúdo do livro que tem vindo a ser divulgado, mesmo que Biden pareça ser um pouco poupado. Mas não é de afastar que caso 107 Days se torne um best-seller, Harris tire daí conclusões sobre a sua popularidade e esqueça a reforma. Quando afastou a hipótese de se candidatar a governadora da Califórnia em 2026 (Gavin Newsom não se recandidata e também é nome forte para a corrida à Casa Branca) abriu espaço para todas as especulações para as presidenciais de 2028. Para já, só diz que quer ajudar a criar uma visão alternativa para os Estados Unidos. Mas a tentação de ser notícia em grande, fazendo história com a eleição para a Casa Branca, deve ser bastante forte. Diretor adjunto do Diário de Notícias