Uma mulher excecional
O Centro Nacional de Cultura publica, todos os anos, no mês de agosto um conjunto de textos sobre as culturas da língua portuguesa. Este ano elaborou um Abecedário no mesmo sentido. E sobressaiu o nome de Carolina Michaelis de Vasconcelos, a primeira mulher catedrática da Universidade portuguesa, que nasceu alemã. Veio para Portugal por casamento com um dos grandes intelectuais do século XIX, Joaquim de Vasconcelos, estudioso de musicologia, cultura, pintura portuguesa nos séculos XV e XVI, dos contactos portugueses com grandes artistas como Albrecht Dürer, Rafael e Van Eyck. Intérprete da identidade portuguesa, foi dos primeiros a pronunciar-se sobre os Painéis de S. Vicente, atribuídos a Nuno Gonçalves.
Na Rua da Cedofeita, na cidade do Porto, a casa dos Vasconcelos era um centro onde se reuniam os mais influentes intelectuais do seu tempo, empenhados na vida cívica e no lançamento das bases do progresso baseado na cultura e na liberdade. O conhecimento sobre a realidade portuguesa de Carolina Michaelis enchia de espanto os seus leitores. É impressionante a lista dos trabalhos que publicou sobre história e crítica literárias. Lembremos os estudos sobre o Cancioneiro da Ajuda e o glossário imprescindível que preparou, com enorme cuidado. A literatura portuguesa foi um inesgotável campo para a sua investigação sobre as origens da poesia peninsular.
Em 1901, D. Carlos concedeu a Carolina Michaelis o grau de oficial da Ordem de Santiago da Espada, como preito de homenagem ao seu labor científico. E em 1911, logo após a implantação da República, foi nomeada professora da nova Faculdade de Letras de Lisboa, lugar que não aceitou, por motivos familiares. No entanto, assumiu o encargo na Universidade de Coimbra, onde recebeu, em 1916, o grau de doutora honoris causa. Em 1923 foi-lhe outorgada idêntica honra na Universidade de Hamburgo.
Mulher e investigadora, cultora da sensibilidade e do rigor, a sua vida demonstra a importância da ligação entre a opção pessoal e a vocação científica. Considerou a Saudade como um "traço distintivo da melancólica psique portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas", muito mais do que a Sehnsucht, característica da alma germânica. "Refletida, filosófica, acatadora do imperativo categórico da Razão pura, ou do imperativo energético da atividade ponderada", a palavra alemã teria "muito maior força de resistência contra sentimentalismos deletérios".
"A saudade e o morrer de amor" são para a estudiosa "as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome". Elas perfumam o meigo livro de Bernardim Ribeiro e os livros que estilisticamente derivam dele, como a Consolação de Israel de Samuel Usque, as Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, as Rimas de Camões, os Episódios e as Prosopopeias de Os Lusíadas, as Cartas da Religiosa Portuguesa e as criações mais humanas de Almeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de Frei Luís de Sousa. Não faltam no Cancioneiro do povo; nem na sua fase arcaica, os reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é, nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até Pedro e Inês. E logo no alvorecer da poesia, surgiram naturalmente "lindos lamentos de amor e de ausência, como na singela composição, em que o rei D. Sancho o Velho desdobra o sentimento da saudade nas suas duas componentes principais: cuidado e desejo".
Vendo a mestra com olhos de hoje, não passa despercebida a intenção claramente emancipadora da mulher que defendia a liberdade e a igualdade, a igualdade e a diferença como faces do mesmo espelho, nunca como realidades antagónicas. Como disse Gerhard Moldenhauer na oração fúnebre: "Quem, para mais conscientemente se orgulhar de ser português, alguma vez se interessou pela nossa herança espiritual, encontrou sempre no excecional espírito de Carolina Michaelis o mais amável dos mestres e o mais seguro dos guias".
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian