Uma leitura incompleta da nova estratégia de segurança dos EUA

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As elites que controlam atualmente o poder federal em Washington têm uma visão errada da Europa. O documento que acabam de publicar sobre a Estratégia de Segurança Nacional (ESN) critica inaceitável e infundadamente a maioria dos dirigentes europeus. Para mais, ignora que uma Europa economicamente forte e unida é, nomeadamente, um parceiro comercial e financeiro fundamental para o bem-estar e a estabilidade de ambos os lados.

Do ponto de vista comercial, as trocas com a Europa em matéria de bens e serviços ultrapassam largamente qualquer outro relacionamento bilateral dos EUA. Concentram-se em produtos e setores tecnologicamente avançados, de importância vital para ambas as economias e com enorme impacto sobre as respetivas taxas de emprego. Mais ainda, os investimentos cruzados entre um lado e o outro, feitos por empresas de matriz europeia em filiais norte-americanas e vice-versa, conhecidos pela designação de Foreign Direct Investments (FDI), contribuem para uma profunda integração económica transatlântica. As empresas europeias investem crescentemente em diversos setores da economia americana, projetando os números da Europa para quase metade do total do investimento estrangeiro nos Estados Unidos. Imaginemos o que aconteceria se uma parte desse montante fosse desviado pela Europa para outras economias. Em princípio, não prevejo que tal possa acontecer, apesar da apreciação profundamente distorcida, disparatada mesmo, que a nova estratégia faz da política europeia e da adoção por Washington de toda uma série de outros obstáculos.

Do ponto de vista financeiro, uma fatia significativa da dívida federal americana é financiada pelas praças de mercados de capitais da UE e do Reino Unido. A administração americana vive acima das suas posses, como muitas outras. Emite notas e obrigações de dívida pública constantemente, para conseguir manter as instituições civis e militares em funcionamento. A grande diferença em relação a outros Estados é que os títulos de dívida americanos são na sua maioria adquiridos por bancos centrais e fundos de investimento estrangeiros. São considerados como fazendo parte essencial do conjunto das reservas soberanas da grande maioria dos Estados.

O Japão, primeiro e de modo bem destacado, e a China, depois, são, enquanto países individuais, os principais detentores de títulos do Tesouro americano. A China é seguida de muito perto pelo Reino Unido. Mas o portefólio britânico adicionado ao da UE ultrapassa largamente a soma dos títulos na posse do Japão e da China.

Imaginemos agora que a UE, por decisão do Banco Central Europeu, naturalmente respaldada pelos bancos centrais da zona euro, reduzia, ligeiramente que fosse, a compra de novos títulos americanos e simultaneamente colocava no mercado uma pequena parte dos que atualmente possui, de modo a diversificar as suas reservas cambiais e para reforçar a posição do euro como moeda de referência global. A UE podia comprar mais francos suíços, libras britânicas, dólares australianos, divisas dos países do Golfo Pérsico e yens do Japão. Uma iniciativa deste tipo, levada a cabo de modo bastante gradual, não poderia ser apresentada como um ato de hostilidade. Seria anunciada como uma medida prudente de diversificação de risco e um passo essencial para a autonomia financeira europeia. Também não deveria ser mencionada como uma reação ao que ficou escrito na ESN, mas tão só como uma decisão no sentido de adaptar as reservas europeias às novas realidades geopolíticas. E ainda, como um processo que permitisse aumentar a relevância do euro na cena internacional. O euro é a segunda moeda de reserva mais importante do mundo, mas o seu papel está aquém do peso económico da União.

Tudo isto tendo presente a afirmação dos interesses europeus, no seguimento da expressão que faz agora parte do quotidiano político nos EUA, a América primeiro. Seguindo essa filosofia na Europa, cada parceiro trataria das suas vantagens, mas sempre num quadro político complementar. A Europa deve continuar a ver os EUA como um aliado, mesmo quando insiste na necessidade de repensar a sua autonomia estratégica e de defender o seu sistema de valores.

Independentemente do que ficou escarrapachado na ESN, as conversas frequentes com o Presidente Donald Trump devem ser tidas como essenciais. Não sei se Trump leu o novo documento que os seus colaboradores ou outros produziram. De qualquer modo, a sua política é muito própria, inteiramente pessoal.

O que acima ficou escrito sobre a complementaridade entre os interesses americanos e os europeus deve ser repetido tão frequentemente quanto possível ao líder da Casa Branca. O verdadeiro inimigo de ambos, nomeadamente na Europa, no Atlântico Norte e no Ártico, é o regime de Vladimir Putin. Essa é a mensagem, independentemente da opinião que se possa ter de Trump. Se Putin destruísse ou abocanhasse a Ucrânia, passaria logo que fosse oportuno à fase seguinte, ao arrasamento de outros Estados europeus. Trump precisa de entender que, se tal acontecesse, o impacto negativo sobre o seu próprio país seria enorme. A história desta novíssima era começou com a invasão russa na Ucrânia. Não pode acabar com a asfixia dos nossos valores nem com a rutura da aliança entre a Europa e os EUA.

Conselheiro em segurança internacional.

Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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