Uma digressão estival em poesia

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É bela a dança que se dança
entre a arte e a morte.

Maria Andresen, 
Sombra
(Assírio e Alvim, 2024)

O livro de poemas de Maria Andresen, de que colhi a epígrafe para este artigo, é um livro de ausências ou de sombras de presenças. Nada nele é forçado ou irruptivo, pois ele queria que as formas dançassem na força do ar.

Talvez seja a delicadeza, e não o grito, a melhor forma de enfrentar a perda, a grande perda de que a poesia é feita, como as grandes perdas de uma vida. O poeta lida com a morte, porque o poema rasga a ferida da ausência em tudo o que toca, como nos ensinou Blanchot. E, como nos diz Maria Andresen, só assim reteremos o som de presságio.

É bom começar a crónica com a sombra insinuada da poesia. Tivemos nestes dias a irrupção de um violento verão na nossa primavera. Os feriados de junho deixaram-nos a cidade meio vazia e só à noite saímos de casa, como se vivêssemos num país tropical, não abençoado por Deus, nem bonito por natureza, mas complacente com o sol que nos encaminha para o mar.

Este prematuro, e supomos que precário, clima de agosto que caiu sobre nós nos fins de maio evoca-me Ruy Belo a afirmar que o verão é a única estação. O mês de agosto que, desde 1987, passo inteiro na mesma praia, tem sido para mim o mês do meu reencontro comigo, com a vida e com os próximos e tornou-se indispensável ao meu exercício de viver.

E é de Ruy Belo a belíssima imagem de pôr Deus na praia, de calças arregaçadas, a viver connosco o verão. Lembro-me, por associação súbita, do belo e melancólico filme de Jorge Silva Melo Agosto, que contrapõe às festas do verão a nostalgia da amizade perdida. Há que ler o magnífico catálogo da Cinemateca sobre a obra do Jorge e respondermos com teatro (força, Artistas Unidos!), com cinema e com poesia à falta que ele nos faz. Mais uma vez Maria Andresen:
A estridência de Agosto, o sul,
a imobilidade esboroável desta terra
o grasnado rouco das gaivotas
.

A poesia é uma afirmação plena da perda e um desafio, à partida vencido, à morte e às suas sombras. Em Camões, que estamos a comemorar aos bocadinhos, é o reconhecimento do desconcerto do mundo e da vida, todos coligados contra o bicho da terra tão pequeno da nossa humanidade. E mais pequenos nos sentimos quanto mais se aproxima de nós o que pensávamos impossível, a guerra nuclear.

E vamos olhar a guerra com os olhos da poesia, com Nuno Júdice, que também este ano perdemos, no seu primeiro livro, A Noção de Poema (1972):
Que terá sucedido entretanto? Que planície
dá guarida aos corpos
dos soldados mortos? Quem, na solidão, terá congeminado 
a desgraça para um país, e a dúvida obsessiva
para um poeta,
a sul?

Ou ainda em Sombra, de Maria Andresen:
Há portas partidas e janelas penduradas
ali houve pessoas, casas, pássaros fugazes,
mudáveis aves

O vento voltou a assobiar o seu canto gelado,
um gato estonteado, um cão e seu uivo preso, tão longo:
tão imprópria é toda a forma de dizer    

Há muito tempo sabemos que viver poeticamente o mundo não é esconder-se do mundo, é olhar para ele com o mais lúcido e cruel dos olhares.

Vamos precisar muito de poesia nos próximos tempos!

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