"Uma bofetada não magoa ninguém"

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Em direto, na cerimónia de entrega dos óscares, assistimos a um episódio de agressão física que, para muitos, foi justificado pela natureza da piada feita. Para além de que, dizem outros, uma bofetada não magoa ninguém e pode ser uma boa forma de resolver problemas. E assistimos ainda a uma plateia inteira que, se num primeiro momento pareceu reagir com surpresa ou choque, ficando em absoluto silêncio, pouco tempo depois aplaudia o agressor.

E foi assim, em menos de nada e com direito a transmissão para todo o mundo, que pudemos assistir a um episódio de violência que espelha aquilo que ocorre de uma forma geral, em tantas outras situações. Segundo o agressor, "bati por amor", "mereceste apanhar" e "a culpa foi tua", ideias que legitimam a violência pelo comportamento da vítima e desculpabilizam quem agride. E para quem assiste, "foi apenas uma bofetada" e "é melhor não nos metermos porque não tem nada a ver connosco", ideias que banalizam a violência e a legitimam pela necessidade da privacidade familiar.

Estamos perante um conjunto de crenças que legitimam a violência e que são muito frequentes no contexto das relações de intimidade, e não só. Crenças que levam a que a violência seja entendida como necessária e desejável e, ainda, que apenas diz respeito a quem está diretamente envolvido. Desta forma, quem observa faz apenas isso mesmo, acreditando que a responsabilidade se dilui por todos aqueles que assistem, acabando por manter um comportamento passivo.

Falamos de crenças transversais a todos os níveis sociais e económicos e que, contrariamente ao que possamos pensar, não são do tempo dos nossos avós, quando se enchia a boca para dizer que entre marido e mulher não se mete a colher. São, infelizmente, ideias que ainda persistem e que se traduzem na perpetuação dos ciclos de violência.

E quanto à inação e à passividade de quem assiste, meros observadores numa primeira fase e, logo depois, agentes de reforço da violência (afinal de contas, "bater foi um ato de amor"), traduz bem a sociedade tolerante e egoísta em que ainda vivemos, que vira a cara e finge que nada se passou.

Pois que esta situação nos permita refletir sobre o que pensamos e fazemos e, ainda, sobre os modelos que estamos a transmitir aos mais novos. Ouvi já alguns jovens comentarem que o seu ídolo é um verdadeiro macho, defendendo o seu amor com unhas e dentes. Que quem levou merecia levar e que ninguém tem nada que se meter com o que se passa na vida das outras pessoas. Crianças e jovens que começam a acreditar nisto apresentam, necessariamente, maior probabilidade de recorrerem à violência ou de a aceitarem como algo normal. E pergunto-me: é isto que queremos?

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

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