Um simples Acórdão do Tribunal Constitucional 

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No início deste mês o Tribunal Constitucional fez o que já havia feito centenas de vezes: julgou inconstitucionais normas que haviam sido aprovadas pelo Parlamento. O mesmo aconteceu durante a austeridade. Ou o covid. Assim se fez quando se quis abolir o SNS, na década de 80. Ou quando não se considerou que a Lei que permitia a morte medicamente assistida, nas suas primeiras versões, oferecia garantias suficientes. Agora, não compreendo o grau de escândalo, surpresa e crítica com que o Acórdão sobre reagrupamento familiar de estrangeiros, prolatado em fiscalização preventiva (e relatado num escasso prazo de 15 dias) foi recebido, e que incluiu ofensas pessoais a juízes, num destilar de ódio e raiva lamentáveis. O debate foi de tal forma distorcido, ampliado, caricaturado, que preferi não intervir nele. 

O Acórdão é um belíssimo aresto. Durante anos, investiguei jurisprudência nacional e internacional sobre reagrupamento familiar para a minha tese de doutoramento, e acredito que esta decisão vai ficar na História como mais um marco garantístico. A decisão podia não ser óbvia – para mim há, indubitavelmente, um direito ao reagrupamento familiar, mas pode ser restringido de forma não desproporcional. Por isso, podemos e devemos escrutinar a decisão abertamente, já que vivemos numa sociedade democrática e plural. Mas as reações com que o Acórdão foi recebido na sociedade portuguesa demonstram uma vitória do extremismo a vários níveis.  

Primeiro, este extremismo conseguiu convencer muita gente que uma das medidas mais urgentes para os problemas do país é, mesmo, a separação, durante dois ou mais anos, de um casal de estrangeiros… O TC disse: regule-se a imigração, sim, mas separar famílias durante dois anos é excessivo. Apenas isto.  

Depois, a mais perigosa vitória do extremismo: convencer as pessoas que é um ultraje o TC sobrepor-se ao Parlamento. Lembra-me algo que Donald Trump disse no primeiro mandato: “como é que os tribunais se atrevem a contradizer as ordens do Presidente dos Estados Unidos da América?!?” De forma quase semelhante, aqui dizia-se: “então a vontade do povo não conta?” Conta pois, mas o nosso Estado, para além de Democrático, é um Estado de Direito. E estas duas qualificações têm de conviver. Por vezes, a última (que demanda a prevalência da Constituição), tem de prevalecer sobre a da Democracia. Na Constituição estão, como alguns autores chamam, verdadeiros “trunfos contra as maiorias”: garantias inegociáveis, que a maioria não pode mudar. Imaginemos um Partido que mentiu durante a Campanha Eleitoral, e, chegado ao Parlamento, quer instituir a pena de morte. Não o poderia fazer, e ainda bem, porque temos este trunfo na Constituição que nos defenderá até ao final: o direito fundamental à vida. Ora, com este Acórdão foi precisamente isso que sucedeu: a maioria quis cercear um direito fundamental (à família), e a Constituição não permite. O trunfo constitucional prevalece. Assim foi e assim será, enquanto vivermos num Estado de Direito. 

Continuo a defender a necessidade de regulação da imigração. E há tanta coisa que se pode fazer sem ferir direitos fundamentais. É só isso que está em causa.  

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Investigadora do Lisbon Public Law

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