meu remorso,meu remorso de todos nós...Alexandre O’Neill O talento de Clara Pinto Correia não era só o fogo fátuo de uma personalidade esfuziante, era um múltiplo esplendor que inundava de alegria todos os seus trabalhos e criações. A Biologia e a História das Ciências tiveram dela um sério e reconhecido contributo, como o jornalismo e a literatura beneficiaram de um trabalho persistente e incansável, que nos deu obras que foram, a seu tempo, justamente saudadas e recebidas.Merecemos nós um fogo tão brilhante como o desta mulher, com a força da sua alegria e a sombra do seu desgosto?O meio literário e jornalístico português deliberou cancelá-la, como se diz hoje, estendeu à sua volta um manto de silêncio e omissão que a escondeu de nós. Sim, a cópia de uns parágrafos do New Yorker numa crónica da Visão, mas o que é esse pecado venial face a uma obra como a sua? Porém serviu para a obliterar do nosso pequeno espaço público e nem o importante trabalho científico que, depois disso, ela realizou nos Estados Unidos, (recolhido no livro Fear, Wonder and Science in the New Age of Reproductive Biotechnology, Colmbia University Press, 2017) conheceu aqui qualquer eco ou repercussão. Como disse Clara Pinto Correia , “em Portugal foi varrido para debaixo do tapete, não se ouviu uma palavra sobre o livro”.Entre trabalhos científicos e obras literárias, o seu legado é impressionante, pelo número e pela qualidade. Eis alguém que não desperdiçou os talentos múltiplos de que foi dotada, antes os realizou num trabalho incansável e percorrido por uma alegria intensa, que escondia de nós a sua dor.Adeus, princesa, como é fácil dizer. Deixámos-te partir, porque não soubemos receber-te. Ter talentos em áreas diferentes não é bem aceite entre nós. A sua multiplicação não é vista como generosidade e trabalho fecundo, mas só como dispersão e frivolidade. E se a imagem pública é brilhante, mais os mecanismos da inveja funcionam para a abafar.A nossa geração começa a desaparecer do espaço público e muitos da própria vida. A melancolia das perdas acresce ao remorso que sentimos por quem deixámos para trás. Eu fui amigo da Clara até ao fim, mesmo sem a encontrar muitas vezes, por viver fora de Portugal. Tentei quebrar a barreira negativa dos editores ao seu último romance Antares, sem sucesso. Felizmente surgiu um editor, o Nuno Gomes, que é biólogo e admirador da Clara, e ele publicou aquele romance (editora Exclamação) e vai publicar em breve o seu livro de história da ciência da infertilidade feminina, Tabu.Carmen Garcia, uma colunista do Público que sempre leio, diz a verdade: torna-se difícil não ficar revoltada com a geração que viveu a fase áurea da Clara, que permitiu que caísse no esquecimento e que agora vem escrever lindíssimos textos de despedida.Mas esta geração que a colunista justamente censura não está ela também a desaparecer, na morte ou no olvido?Que fizemos nós? A Revolução e a Democracia, é fácil responder. Mudámos o país de uma forma que só nós, os mais velhos, podemos sentir. Mas não estamos já na movida dos tempos. Lutamos para que os valores fundamentais da solidariedade social, da convivência multicultural e da liberdade de expressão cultural não sejam apagados pelo ressurgir dos fantasmas do passado, que iludem facilmente quem os não viveu. Mas temos que deixar de lado o estatuto que nos querem colar de has been e não termos medo de ser o que somos e de levantar a voz na praça pública. Diplomata e escritor