Um presidente com memória

Publicado a
Atualizado a

A memória do presidente dos Estados Unidos passou a ser assunto de Estado e fraqueza eleitoral para a reeleição.

A idade de Joe Biden tem sido uma preocupação para muitos democratas e um obstáculo aos seus resultados eleitorais. Nos últimos dias, a ansiedade galgou para níveis preocupantes na campanha de reeleição, alavancada pelo relatório de 345 páginas do procurador especial Robert Hur sobre a retenção de documentos confidenciais por Biden, que continha uma série de passagens prejudiciais sobre a alegada “memória defeituosa” do presidente durante entrevistas com investigadores no outono passado. O documento descreve Biden como “um homem idoso e bem-intencionado com memória fraca”.

s investigadores não encontraram provas suficientes para acusar Biden de manipulação indevida de documentos confidenciais durante o seu período como vice-presidente (2009-2017, nos dois mandatos presidenciais de Barack Obama), mas escreveram que a sua memória “parecia ter limitações significativas” e que “não se lembrava de quando o seu filho Beau morreu” em 2015.

Biden, de acordo com o relatório, não conseguia recordar-se de quando foi vice-presidente ou dos detalhes de um debate sobre o envio de tropas adicionais ao Afeganistão (ele foi contra, Obama decidiu ao lado dos generais no terreno pelo reforço).

Joe Biden ficou furioso com o pormenor do relatório que apontava que nem sequer se lembrava de quando o filho morreu: “Como é que eles se atrevem?”

Descontado este detalhe mais pessoal, os estilhaços políticos do relatório são evidentes.

Mitch Landrieu, um dos principais responsáveis da campanha presidencial de Joe Biden, apelidou a ideia de que Biden não é capaz de cumprir as funções de presidente como “um balde de porcaria que é tão profundo que as suas botas vão ficar presas nele”. As declarações de Hur foram comparadas com a decisão do diretor do FBI, James Comey, em julho de 2016, de atacar a forma como a candidata democrata, Hillary Clinton, lidou com material confidencial. Em ambos os casos, os críticos rotularam os comentários como golpes baixos, politicamente motivados. “Com base na lei e nos factos, que é o que os advogados e conselheiros especiais devem considerar, a conclusão foi que o presidente não se envolveu em nenhum delito, ponto final, fim da história”, disse Landrieu, em entrevista na NBC.

Robert Hur é um procurador de Maryland nomeado por Donald Trump, que o procurador-geral da Administração Biden, Merrick Garland, indicou para supervisionar o caso dos documentos de Biden.

Sim, claro que vai contar na eleição

Podemos considerar que a idade de Biden é algo que até agora não o impediu de ser um bom presidente. É exatamente isso que acho, aliás: apesar dos 81 anos não o ajudarem, a verdade é que, até agora, não o impediram de fazer um mandato com muitos triunfos e boas decisões, a par de um desempenho económico francamente impressionante.

O problema não está no que já foi até agora. O problema está na projeção do que ainda estará para vir. E, quanto a isso, também não vale a pena tentar provar que a questão não existe. Claro que existe.

A esmagadora maioria dos americanos acha que Biden é velho demais para um novo mandato. Sondagem ABC News/Ipsos (9/10 fevereiro), aponta que 86 por cento dos norte-americanos decreta essa sentença sobre o atual presidente dos EUA: “Demasiado velho para um novo mandato.”

Mas atenção: um número também amplamente maioritário (mas não tão esmagador) acha o mesmo de Trump (59 por cento). Donald já vai com 77 anos.

O que deve (ou pode) Biden fazer?

E então? O que pode Joe Biden fazer perante um problema tão objetivo como a sua data de nascimento (o longínquo dia de 20 de novembro de 1942)?

Matt Bennett, vice-presidente-executivo da Third Way, aponta: “O presidente não pode continuar a tratar as questões sobre a sua idade como se fossem um disparate fabricado pelos seus adversários ou um ataque injusto. Alguns usam-no dessa forma, mas muitos eleitores têm dúvidas legítimas sobre a sua capacidade de desempenhar o cargo acima dos 80 anos. Quando a Casa Branca enfrentou ventos contrários noutras questões, como a imigração, adotou uma nova estratégia. Eles deveriam fazê-lo aqui, abordando a questão da idade de maneira direta e contextualizada. Para Trump, a idade trouxe confusão, caos e raiva. E aprofundou a sua preferência por se rodear de bajuladores antiéticos e inexperientes. Porque, para Trump, a fidelidade pessoal e o compromisso com a sua visão destrutiva para a América são tudo o que importa. Devem pôr Biden a reagir assim: ‘Aprendi muito nas minhas décadas de serviço público e isso fez de mim um presidente melhor; Trump não aprendeu nada e a sua recusa em mudar faria dele a pior pessoa que poderíamos escolher para liderar este país.'”

“Antes velho e estável que velho e louco!”

Na mesma linha, e de forma ainda mais assertiva, Maria Cardona, experiente estratega do Partido Democrata, atira: “A campanha de Biden deveria (e acredito que o fará) continuar a deixar Biden ser Biden - com gaffes e tudo. A sua empatia, autenticidade e humanidade são os seus superpoderes. Esta eleição é uma escolha. E não há comparação entre qual candidato está pronto para continuar e já serviu o povo americano coxm sucesso, feroz e empenhadamente, e quer terminar o trabalho de expandir a nossa recuperação económica, proteger os nossos direitos e liberdades, e fortalecer a nossa democracia - e um candidato que quer terminar a tarefa de destruir a nossa democracia e lutar apenas por si mesmo. Sim, Biden é velho, mas Donald Trump também. Prefiro ser velho e estável do que velho e louco!”

A grande ironia: Biden está a recuperar

Depois de várias semanas com Trump alguns pontos à frente, Joe Biden conseguiu recuperar nas últimas duas semanas e está tecnicamente empatado com o mais que provável nomeado republicano. Nas últimas sete sondagens nacionais, Biden aparece à frente em duas, Trump em três, empate noutras duas; mesmo nos estados decisivos, Trump reduziu a vantagem. Por exemplo, no Wisconsin, um dos estados do Midwest onde Trump bateu Hillary em 2016 e Biden ganhou a Donald em 2020, Trump estava cinco pontos à frente há dois meses: agora estão empatados (47-47).

Os primeiros testes do lado democrata confirmam que Biden não tem concorrência real nos democratas, mas isso não está a comprometer a mobilização em torno da sua nomeação: tanto nas percentagens, como no número de votos, Joe tem desempenhado acima do que se esperava. No New Hampshire, mesmo sem estar nos boletins, 65% escreveram o nome dele à parte (nada mau para quem tem fama de ser pouco entusiasmante...). No Nevada, 89%; na Carolina do Sul, 97%.

Os bons desempenhos de Biden reduzem espaço à ideia de alguns setores democratas de ainda travarem a recandidatura do Presidente.
Que ironia.

Sim, Joe Biden é um presidente com memória

Deixemos, nem que seja por momentos, os relatórios sobre a capacidade mental de Biden.Foquemo-nos no seu percurso e na sua longa experiência política.

Sim, Joe Biden é um Presidente com memória. Já viveu muito. Já sofreu muito. Já errou muito. E já travou, por várias vezes, as melhores batalhas do lado certo.

É um presidente com memória, no sentido mais vasto e nobre do termo. E isso, nos tempos de fragmentação de valores em que vivemos, não é coisa pouca.


Especialista em Política Internacional

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt