Um país aos apalpões
Estamos a horas do arranque oficial da campanha eleitoral. Luísa, que procura ser reeleita, visita uma festa popular no sul do país. Está a conversar com dois homens quando uma câmara de televisão capta o momento em que estes apalpam as nádegas da candidata, que continua sorridente. É então que surge um terceiro homem e repete o mesmo gesto. Mesmo após aquela abordagem, Luísa não deixou a festa sem fazer uma garantia: “Num dos próximos anos venho cá para passar o dia todo. Para ver se aguento a vossa pedalada.”
O momento é exibido num telejornal. Segue-se um coro de reações: há os que condenam o ato, os que prestam solidariedade à candidata, os que lembram séculos de abusos continuados perpetrados contra as mulheres e como estes devem ser condenados sem rodeios; depois, há os que desvalorizam a situação e olham para as palavras de Luísa vendo nelas complacência e aceitação de uma atitude que é punida por lei, acusando-a de tudo um pouco nas redes sociais, pois, afinal, se prometeu voltar é porque teria gostado.
A situação descrita acima é inspirada em factos reais, mas com duas diferenças substanciais: o género dos protagonistas e o tipo de debate que se seguiu após as imagens passarem na TV. Na verdade, Luísa é Luís Montenegro, primeiro-ministro e de novo candidato ao cargo. Participando na Festa da Bilha, dia 2 de maio, no Algarve, enquanto líder da coligação AD, Montenegro foi ostensivamente tocado nas nádegas por três mulheres e reagiu com sorrisos. Se fosse uma ministra do seu Governo a ser visada, o primeiro-ministro reagiria da mesma forma? Se em vez de três senhoras e meia dúzia de toques nas nádegas, tivessem sido três homens a dar-lhe meia dúzia de 'calduços', o líder da AD também sorriria e aceitaria aquele contacto físico como se nada fosse? Sim, estamos no campo das hipóteses... Por isso, voltemos à realidade. Essa, o que nos mostrou foi um silêncio ensurdecedor em relação ao que se passou no Algarve, sem reações indignadas, nem mensagens solidárias, tendo o episódio apenas servido de inspiração para um texto humorístico de Ricardo Araújo Pereira.
Aqui ao lado, em Espanha, o beijo na boca de um dirigente desportivo a uma jogadora de futebol (o caso Rubiales) motivou acesos debates, que extravasaram fronteiras. Por cá, um primeiro-ministro é apalpado por três senhoras e nem sequer é assunto. Se o caso fosse com Mariana Mortágua, Alexandra Leitão, Margarida Balseiro Lopes ou outra mulher com responsabilidades políticas seria igual? Faz pensar que, de facto, andamos todos aos apalpões na forma como reagimos a estes assuntos, entre a indignação e a indiferença.
Sei que há problemas mais graves no país. Sei que toques não-autorizados em mulheres carregam séculos de abuso e domínio, que os toques destas senhoras em Montenegro não refletem. Também consigo entender que aquelas três mulheres que assim interagiram com o primeiro-ministro, sem o consentimento deste, o tivessem feito de forma irrefletida, não tendo outra intenção que não fosse uma 'brincadeira', uma pequena provocação – mesmo que o “toque nas nádegas” possa configurar crime.
O que já não consigo perceber, e me incomodou, é que alguém com a responsabilidade política que tem o primeiro-ministro seja condescendente com este tipo de comportamento. Não precisava de ser brusco na condenação, mas devia tê-lo feito. Até para não correr o risco de, ao ser omisso, estar a empoderar no futuro aqueles que olham para o corpo do outro, independentemente do género, como um mero objeto do qual podem dispor sem consequências alegando que, afinal, estavam apenas a brincar.
Editor Executivo do Diário de Notícias