Um mundo a preto e branco

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Os nossos verdes anos (fala um septuagenário) foram um mundo cinzento e submisso, que a imagem a preto e branco traduz da melhor maneira. Falo de um filme agora estreado, Lavagante, de Mário Barroso: nunca tão fortemente me senti transportado à atmosfera sufocante dos anos 60, no nosso país.

Pode haver quem tenha saudades desse tempo, sobretudo aqueles que o não viveram. Também podemos considerar que tempos semelhantes podem vir aí, agora a cores e com efeitos especiais. Mas creio que, para melhor compreenderem a nossa geração e a História que se lhe seguiu, os jovens muito ganhariam em simplesmente ver e seguir o enredo deste filme.

Um dos comentários que ouvi à saída do cinema, de jovens que tinham como eu acabado de ver o filme, foi este: “Eles viviam com uma intensidade que nós já não temos”. Sim, os mais novos tiveram as liberdades políticas e as liberdades de costumes como um dado adquirido ao nascer. Mas enganam-se se pensam que tudo foi permanentemente conseguido e que deixou de ser necessária a intensidade das emoções coletivas. Como ensinou Thomas Jefferson, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. E eu não sei se estamos a medir com realismo as ameaças atuais e imediatas às nossas liberdades e se estamos a exercer plenamente a vigilância que nos deve custar o gozo pleno dessas liberdades.

Os mais poderosos da Terra governam os seus países de um modo autocrático e belicoso que nos fazem desejar não viver nesses países. É verdade que muitas brutalidades que hoje se dizem em público sem vergonha eram antigamente praticadas à mesma, sob o véu da hipocrisia diplomática. Mas o facto de se sentir necessidade de esconder e dissimular as brutalidades e os crimes dos poderes manifestava que existia ainda uma exigência ética da opinião pública, que nos países democráticos podia conduzir às quedas dos governos e nas ditaduras às revoltas e até mesmo às revoluções. Mas essa exigência ética era já uma manifestação daquela intensidade, que muitos julgam perdida.

Há cinquenta anos, o paraíso de que a nossa extrema direita tem saudades, pois de então para cá só teria reinado o desgoverno, tem um retrato sóbrio e exato neste filme, Lavagante, que por si só é uma lição de História e de Ética política.

Nada nos deve merecer maior combate do que o conformismo e a passividade face a todas as violações das liberdades e garantias consagradas na nossa Constituição. Voltar a viver num filme a preto e branco, visto pela Comissão de Censura, não!

Alguns leitores poderão considerar este texto uma manifestação paranóica de alguém que vê gigantes nos moinhos de vento e candidatos a ditadores nos nossos simpáticos políticos da extrema direita. O clima público é de liberdade de opinião e de escrutínio cerrado dos poderes. O nosso parlamento não foi incendiado nem dissolvido, os partidos fazem as suas campanhas normalmente, a liberdade de expressão prevalece e funciona o equilíbrio de poderes determinado pela nossa Constituição democrática.

Talvez eu tenha tido um sonho, um pesadelo. Talvez tudo esteja bem e o delírio esteja em mim. Mas porque é que, ao ver este filme, eu senti com tanta força que aquele Portugal poderia voltar, ainda que com outras roupagens e outra iluminação?

Diplomata e escritor

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