Um livro rude e necessário: 'Plagal', de Paulo Sarmento

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A excelente editora Sr. Teste, cujo gosto gráfico é, a todos os títulos, ímpar na história da nossa edição recente, tem, igualmente, colecções (“Fulgor Quotidiano”, “Imagem e Semelhança”) que primam pela sobriedade e o gosto: a sobriedade dos livros nelas publicados e o gosto relativamente aos textos e autores que nelas figuram. O livro de hoje foi publicado em 2024 e este meu texto é, antes de mais, um acerto de contas e um pedido de desculpas por não ter escrito assim que o autor, Paulo Sarmento, mo enviou. O acerto de contas, esse, é comigo e com estes textos que são de uma invulgar beleza - de uma beleza que fere. Que golpeia. E é por aqui que o belíssimo título, Plagal, melhor se entende. “Plagal”: é, na música, “o modo de transpor uma voz para um tom inferior”. Reenvia, pois, ao silêncio. Diz-nos uma nota de abertura, a itálico, esclarecendo o título: “No cantochão, a cadência plagal é o modo de rematar a melodia associado geralmente à entonação do amén.” É, acrescenta-se, um “modo oblíquo”, por isso transversal, desviado e não natural, de “colocar algo”. O corpo, escreve-se. Enfim, “plagal” pode também significar “vida errante” (por extensão semântica), e evocar aquele que está fora de si, “que foi atacado de vertigem”. Assim, “plaga”, etimologicamente, significa “choque”, “golpe, “ferida”, “derrota”, mas também “castigo”, “praga” e, por fim, “calamidade”. Na geografia: travessia de lugares inóspitos. Ou tão-só travessia: praias, região, um país, “uma extensão de terreno”.

Munidos destas pistas, entremos no livro - neste pequeno e grande livro feito das estruturas e ritmos, imagens e frases que o autor, numa outra nota posta no fecho, nos dá. Este é um livro que passa, como regiões da arte que se atravessam no momento da escrita, pelas Variações Goldberg, mas também pelo cinema (o Quijote de Orson Welles, a Viagem a Itália, de Rosselini, Au Hazard, Balthazar, de Bresson, entre outras referências cultas), pelo teatro (Pasolini e a peça Orgia, como a imaginou Nuno Cardoso), por um sistema de ecos, de frases (Char, e uma frase de Marx sobre o Espírito Santo, ecos de Rimbaud, as presenças de Nietzsche e de Holderlin, alegorias, ou encarnações do silêncio do Ocidente. É, pois, um livro culto, mas de uma subtil erudição que não é exibicionismo citacional. Comparecem Ângelo de Lima, Maria Luiza Sarsfield Cabral, prisioneira política. Mas importam os textos, poemas em prosa onde o idioma é alvo de um labor frio. Essa é uma frieza que vem de Carlos de Oliveira, que Sarmento absorve com consciência dessa linhagem. A presença da terra, ao abrir o livro, transporta-nos para esse veio de uma poesia da memória, feita de uma geografia pobre. O olhar do poeta descreve, contempla: “Na minha terra os poços são rios. Há uma compreensão literal da sua invisibilidade, excepto nas margens de adobe. À noite, os níveis da água são repostos.” (p.6). Um dos projectos destes poemas é justamente esse: concretizar (efectivar e tornar palpável) os gestos de uma sageza, seja ela a escrita ou o ver as ideias, pensar: “Fazer metafísica com a plaina, a grosa e a lixa; alcançar na fricção um fogo, no fogo, a metamorfose; tocar o aspecto e, violentamente, a essência - que em novo aspecto se abre” (p.11).

Poder-se-ia falar de alquimia, de “labor limae”, mas creio que neste Plagal de tal modo a sintaxe é medida e enxuta, de tal modo as metáforas (poucas) e as alusões, ou o funcionamento da alegoria são submetidos a uma disciplina férrea que busca literalizar o mundo, golpear a poesia que avança para os escolhos do sublime ou, o seu contrário, para os pegos e pântanos de uma palavra paupérrima que, para além de alquimia, ou de metamorfose, o que lemos é da ordem da gestação. Do que está em estado nascente. Se é certo que temos a imagem do “alquimista [que] arde no desejo”, adiando o “tédio da consumação”, certo é que ele duvida “tanto das mãos como do que entre elas resulta.” (p.12). Do que se trata nestes poemas é precisamente de aprender a contemplar: a construir um templo (o texto? O livro?), que é “construção do tempo”. “Aprender com os gatos”, eis o mandamento: o ouro, essa metáfora da quintessência, isso já não importa - importa exercer um direito: o do “sangue herdado”.

Paulo Sarmento, na verdade, vem falar também do amor: da liturgia, da “febre do terror”, do “rito que eleva o amor ao próximo ódio pelo ausente” (p.14). Pressente-se certa vibração escatológica, isto é, certa violência (mães assistindo ao afogamento dos filhos, a farsa do mundo, a denúncia dos gestos de um lugar fechado, com títulos e lapelas e o tédio, essa força que tudo vence e que o poeta procura expulsar) que é irmã da cumplicidade, do testemundo. A voz que se vai desfiando conta coisas, descreve tempos e espaços, mas tudo num universo indefinido, tudo num território que confina com o pesadelo ou o sonho: filmes e álbuns de família, sepulcros e cemitérios, a “vida febril” por debaixo “do mármore”. Tempestade que se atravessa como se fosse uma região soturna, este livro, nos seus textos espacejados, é um corpo mutilado, ou “um corpo refeito na tocha” (p.25) e arrasta-nos para uma certeza intemporal: “a guerra acabou, a guerra não acaba nunca”. Magistralmente, coartando o raciocínio de orações subordinadas, há versos que nos obrigam a parar, a ler em convulsão: “Diz que a felicidade. Que a esperança. E o cadáver do amor esquartejado. Em casa, na rua, no motel.” (p.25). Orações numa sintaxe às golfadas (“Que o sonho não saberia de geografia. Que do mar teria aprendido as vagas.”; poesia que não expõe exclamativamente - tudo é frio e cerebral aqui - o turbilhão daquele que escreve, mas sugere a fonte de onde esse turbilhão (sintáctico, imagético) vem: do ódio à disciplina, da Possibilidade, “ter no fim, se um fim se pode dar ao sonho, ter sido a morte” (p.29).

Mas este é um livro que espelha a História: 2000 anos dela. Ou é um livro sobre “a angústia das ampulhetas nas baterias dos telemóveis” (p.44), ou é um livro sobre o barco encalhado: a Humanidade. Livro onde Paulo Sarmento tanto restaura as imagens de um certo gosto decadentista (“Águas a cair de penhascos, águas que já antes dos vivos corriam […]” (p.92) e são imagens que derivam também deste nosso tempo iminentemente final, como, no mesmo passo, adequa a sua fala a uma época - esta, contemporânea - inescapável e a pedir um exorcismo. Desde logo, o da inspiração: “A inspiração como um revólver carregado” (p.61). Ou o exorcismo do tempo: independentemente das idades, todos nós faremos “a mesma cavalgada” e todos nos dirigimos para “o mesmo abismo”. Na força deste texto, as frases curtas, o tom imperativo, ou a simples declaração. A nota célere, cortante (“Modo de manter afastada a carne opaca. A nevrálgica fonte do desespero. A jorrar por debaixo da lage. E as flores secas sobre o mármore” (p.66). No fundo, neste livro, na sua frieza temperada, equilibrada, Paulo Sarmento mostra um dos princípios da ficção literária: “A mentira como resistência”, essa liberdade genuína onde o Poeta se reencontra com a escrita: esse “caro inimigo”, esse tão certo secretário, o papel - com que as penas alguém se desafoga.

Professor, poeta e crítico literário

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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