Um jornal é um serviço público

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"O Diário de Notícias – o seu título o está dizendo – será uma compilação cuidadosa de todas as notícias diárias, de todos os países, de todas as especialidades; num estilo simples e com maior concisão, irá informar o leitor de todos os acontecimentos interessantes (…) Eliminando o artigo de fundo, não discute política, nem sustenta polémica.”

Este excerto, dirigido ao público-leitor da primeira edição do Diário de Notícias, publicada a 29 de dezembro de 1864, é mais do que uma declaração de intenções. É um compromisso fundador. Cento e sessenta e um anos depois, celebramos o percurso de um jornal que atravessou o fim do século XIX, resistiu às convulsões do século XX e chegou ao novo milénio confrontado com desafios extremos à prática do jornalismo.

Um jornal é, antes de tudo, um serviço público. O jornalista conta a história do Outro, procura fontes independentes, trabalha sob pressão e, quando a sente, não cede. Há uma máxima antiga que continua actual: quem não aguenta o calor, não vai para a cozinha. O jornalismo não é um lugar de passagem nem um exercício ocasional de opinião. É um estado permanente. É-se jornalista, não se está jornalista. Infelizmente, as duas realidades coexistem, muitas vezes com propósitos distintos.

O jornalista – não o comentador, não o cronista – assume a missão de relatar o mundo sem procurar julgamentos pessoais. Isso não significa neutralidade absoluta nem ausência de olhar. A subjectividade existe e manifesta-se na escolha das fontes, na construção da narrativa, nas perguntas feitas e nas que ficam por fazer. A diferença está na ética. Um código deontológico não elimina a visão do jornalista, mas disciplina-a, garantindo ao leitor acesso ao maior número possível de factos e de vozes relevantes, sejam da sociedade civil ou da esfera política.

Há dias, a polémica instalou-se em torno de um portefólio fotográfico de Christopher Anderson para a Vanity Fair. Cada imagem era um comentário político, uma denúncia clara. O texto, assinado por Mark Guiducci (Vanity Fair Goes to the White House: Trump 2.0 Edition), que acompanhava as fotografias, resultado de meses de entrevistas a figuras centrais da administração Trump, fez precisamente o que o bom jornalismo deve fazer: colocou os factos e as citações no papel, sem adjetivação excessiva, sem moralização. A crítica ficou nas imagens. O leitor foi convidado a ler, a ver e a pensar por si.

Os meios de comunicação social têm espaço para enquadrar posições, para publicar opiniões antagónicas, para promover debate. O essencial é que o leitor disponha de informação suficiente para formar a sua própria opinião. Pensar é um acto político. Promover pensamento, mesmo que apenas na esfera íntima de quem lê, é uma das linhas definidoras da boa prática jornalística.

O jornalismo deve ser tudo aquilo que o algoritmo não é: abrangente, contextualizado, plural, sustentado em factos verificáveis e fontes credíveis. Num mundo dominado pela velocidade, pelo consumo fragmentado e pela leitura superficial, cresce um viés perigoso para a profissão. “Ler as gordas” não é ler a notícia. Os títulos e destaques digitais raramente contam a história inteira. Ainda assim, muitos leitores informam-se apenas por fragmentos, comentários alheios e indignações instantâneas, alimentando uma lógica populista que empobrece o debate público.

O populismo não é amigo do jornalismo. É o seu maior inimigo. E, nesse combate, o jornalismo não está sozinho: a democracia sofre do mesmo mal. Para 2026, o desejo é simples e exigente, um jornalismo isento, ético, transparente, capaz de resistir às pressões políticas, ao sensacionalismo e ao facilitismo. Quando o jornalismo cumpre a sua missão, a democracia fortalece-se. Quando falha, instala-se a fragilidade, a demagogia e um pensamento circular, incapaz de integrar a diversidade que faz o mundo avançar.

O jornalista sabe tudo isto melhor do que ninguém. Por isso, quem é jornalista não se resigna. Aguenta o calor da cozinha. Sempre.

Jornalista e escritora

Diário de Notícias
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