Um irónico embaixador da realidade

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A entrevista de Mário Centeno ao jornal Público, esta semana, reuniu advertências e ironias, incongruências e pragmatismos.

O paradoxo de Centeno ‐- de pai do cenário macroeconómico do PS, em 2015, para arauto da política monetária que destruirá o PS, em 2023 - é inescapável.

Aqueles que criticaram a sua ida das Finanças para o Banco de Portugal, em nome da transparência e da separação de poderes, são os que mais beneficiarão das suas inevitáveis intervenções, desmentindo a narrativa do governo com a autoridade de governador e a credibilidade de ex-governante.

Foi o que sucedeu nos últimos dias, em que contrariou Marcelo, Costa e Medina, ironicamente convertido num embaixador da realidade junto do nosso país.

O avolumar de pressões do lado da procura na inflação, a necessidade de aumentar taxas de juro para a controlar, o efeito das poupanças feitas durante a pandemia e ainda antes da guerra, o facto de a crise inflacionista não ser temporária e ter um fim impossível de prever - todos os chavões que o atual governo vendeu para evitar dar más notícias aos portugueses foram diligentemente desmistificados pelo homem essencial para o seu sucesso desde 2015.

Nas entrelinhas, nota-se o desprendimento de quem pretende provar independência. A crítica às enormes margens de lucro das empresas como fonte de inflação - com a receita de IRC acima dos 50% face ao ano anterior - vem explicar a taxação extraordinária às grandes superfícies, anunciada pelo primeiro-ministro há dias. O puxão de orelhas a apoios transversais - e não focados nos que mais sofrem - visou diretamente medidas bandeira de António Costa como os 125 euros e a descida do ISP.

A primeira ironia de Centeno é que o BCE, cujo mandato vem agora defender, demorou dez meses a reagir aos sinais na inflação, que já ultrapassava os 2% core no outono de 2021. A segunda ironia de Centeno é que o Estado português, depauperado pela sua política de cativações, enfrentará a crise que aí vem sem os serviços públicos de que precisaria. A terceira ironia de Centeno é que, ao emancipar-se como polígrafo do discurso governamental, não apaga o seu contributo para a ficção orçamental que se tornou a gestão das finanças nacionais.

Nos dados mais recentes, o Terreiro do Paço tem 34 mil milhões de euros em despesa por executar até ao final de 2022, respeitando o OE em vigor. Para cumprir com as suas próprias metas, o governo teria de gastar 15% do PIB em três meses. Se gastar só 30 desses 34 mil milhões, por exemplo, terá défice zero num ano em que urgências foram sucessivamente encerradas e o poder de compra dos portugueses irremediavelmente diminuído. Numa palavra: austeridade.

Centeno foi fundador e trave-mestra deste tipo de artifício. Agora, é ele quem anuncia que não há espaço para mais.

Para o governador, é um exercício em hipocrisia. Para a democracia portuguesa, é uma tragédia.

Até para desmentir uma mentira resta-nos apenas um dos seus autores.

Colunista

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