Um exemplo de desigualdade institucional: julgados de paz e meios de resolução alternativa de litígios

Publicado a

Há uma história, que mete dinheiro público e investimento associado, e que exige uma decisão. Pode ser uma de entre várias, mas esta é evidente e carece de determinação.

Em 2000, há duas décadas e meia, o País optou, pela via do seu parlamento e do seu governo, por recriar um modelo de tribunais de proximidade, sem exigirem advogado ou grandes despesas dos interessados, chamado de julgados de paz. Desde essa data, foram sendo associados a este modelo de resolução alternativa de litígios, sem grande ânimo, é certo, sistemas públicos de mediação, desde logo familiar, laboral, penal. E criou-se um modelo de arbitragem, nomeadamente para resolver conflitos de consumo, que se estabilizou, mesmo se sem grande entusiasmo ou sequer grande utilização pelos próprios interessados.

A este projeto foi sempre sendo prometido, a começar pela via dos programas eleitorais e de governo, que seria reforçado, clarificado, melhorado. Nunca o foi. A nenhum governo, desde a equipa ministerial da Justiça, inaugural na questão, de 1999-2002, composta por António Costa, Eduardo Cabrita e Diogo Lacerda Machado, interessou muito, na verdade, o tema. Aliás: interessou não interessar, eventualmente por ser desconfortável para com as corporações tradicionais da justiça, desde logo juízes e advogados, a quem era incómodo um modelo de resolução de conflitos que os dispensava à partida e que, provavelmente na cabeça de muitos, mesmo se erradamente, menorizava.

O modelo nasceu assim como experimental, como o diz a lei, e disso nunca passou. Os sucessivos parlamentos e governos optaram por não alocar financiamento e interesse, que permitisse por exemplo a expansão do modelo, bom ou mau, a todo o País. Tornou-se uma curiosidade, um exotismo, presente nalguns concelhos, e não presente na maioria do território. Estabeleceu-se a desigualdade de acesso e de serviço como regra, no território nacional: provavelmente a maior e mais evidente desigualdade de acesso a serviços públicos, que só a ninguém nunca chocou, porque o acesso à justiça é uma coisa que só diz respeito a uma parte circunscrita e temporalmente delimitada da população e não dá votos a ninguém.

Assim, duas décadas e meia depois, estamos. Uma parte diminuta do território beneficia de acesso a julgados de paz, boa parte não. No processo, estes julgados de paz, que deveriam ser formas expeditas e compreensíveis de resolução de pequenos conflitos entre privados, emularam, sem contraposição, o pior do funcionamento da justiça tradicional: o formalismo vazio, a demora escusada, a linguagem retorcida, a distância das pessoas que deles mais precisavam. Com a anuência, desde logo por omissão, de um Estado que pareceu optar há por esse modelo, por ser distinto do mais pesado e típico da justiça tradicional, mas que simplesmente o esqueceu. Talvez esta evolução também explique a falta de uso deste modelo, que provavelmente mais valia acabar de vez – em vez de ser, como hoje, um sistema parcelar, desigual e quase tão demorado na decisão, agora, como os tribunais judiciais.

Pela minha parte, não encontro de momento qualquer vantagem neste projeto, associado às autarquias para o seu funcionamento. Provavelmente deveria ser uma justiça de proximidade associada aos tribunais de primeira instância, estes presentes em todo o território, e para o qual deveriam ser remetidos conflitos cuja simplicidade o permitisse. O modelo de um tribunal multi door, que nunca se estabeleceu em Portugal, porque mexer com magistrados e advogados é sempre dor de cabeça garantida. E deveria incorporar uma realidade que é a da generalidade dos cidadãos hoje, de apresentação de um litígio e da sua resolução a funcionar online, como, aliás, é boa parte da nossa contratação, aceite-se essa realidade ou não.

Nada fazer quanto a este tema, como provavelmente sucederá nos próximos anos, não é só o prolongar de desigualdades injustificadas ou de despesa pública por avaliar. É também um mero exemplo de como a justiça continua a ser, por mais palavras bonitas e convenientes que se arregimentem, de tempos a tempos, uma realidade na qual parece que a melhor política é não mexer e, no limite, despejar de vez em quando mais dinheiro e mais pessoas, para fazer o mesmo e da mesma forma, de há décadas – sem ambição, sem avaliação pública, sem futuro.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Diário de Notícias
www.dn.pt