Um erro histórico
As alterações legislativas propostas pelo Governo em sede de cidadania e imigração agravam, de forma sensível, as soluções aplicáveis aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa. Isto ocorre em resultado quer de alterações que lhes são especificamente dirigidas - como acontece, por exemplo, com a elevação para 7 anos do tempo de residência requerido para a naturalização - quer de soluções de carácter geral que, caso aprovadas, lhes passariam a ser também aplicáveis.
Desde a redacção originária que a Constituição da República Portuguesa, em sede de princípios aplicáveis em matéria de relações internacionais, incluía a manutenção de “laços especiais de cooperação e amizade” com os países de língua portuguesa. Na revisão de 1997 (acordada, politicamente, entre António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa) esses laços passaram a ser constitucionalmente qualificados como “privilegiados”.E na seguinte - a revisão de 2001 - foram disso extraídas consequências específicas em matéria de direito dos estrangeiros, autonomizando-se então, nesse âmbito, o tratamento constitucional dos “cidadãos dos Estados de língua portuguesa com residência permanente em Portugal” (a quem, em condições de reciprocidade, são reconhecidos direitos não conferidos a estrangeiros).
Para lá de inconstitucionalidades que têm sido apontadas em soluções específicas propostas e sobre as quais, se prevalecerem, se debruçará, a seu tempo, o Tribunal Constitucional, estamos perante um golpe - e uma ferida aberta - no desenvolvimento do programa constitucional que foi sendo construído para a lusofonia. Pesaram demais os que estão sempre tão dispostos a evocar a nosso passado grandioso pelo mundo fora como prontos a renegá-lo, diminuindo o lugar dos povos com que o partilhamos. Isso comporta desde já riscos de vária natureza, a começar pelo desperdício desse passado, e, a concretizar-se, arrastará, a prazo mais ou menos breve, consequências negativas para Portugal. Apenas um ponto, pouco realçado, para o tornar mais claro.
Com semelhantes propostas aprovadas, as respostas legislativas portuguesas teriam de considerar-se, de vários ângulos, acentuadamente menos “amigas” do que as que a França consagra com referência à francofonia e a Espanha em relação aos países da América do Sul e Central (com a agravante da inclusão do Brasil no grupo “privilegiado”) e até doutros da África e da Ásia. E é evidente que brincam com a realidade e a história aqueles que sugerem que a comparação pertinente será com países como a Dinamarca ou a Áustria… No requisito do tempo de residência, por exemplo, a Espanha fica-se pelos dois anos em relação à América Latina e a França, genericamente, pelos cinco, havendo neste último caso hipóteses específicas de redução ou dispensa desse prazo em função de escolaridade em estabelecimento em que o ensino seja em francês. Esses são exemplos de soluções mais inteligentes a lidar com a história, a cultura e a língua, assumidas, em termos consequentes, como alavancas de projecção externa dos países em causa.
Bem pode o responsável pelos Negócios Estrangeiros assegurar - e até fazê-lo a partir de Cabo Verde - que se trata de soluções “moderadas” e “equilibradas”. Num mundo em que há cada vez mais comparação e escolha, algumas das opções agora propostas representam um erro histórico que outros, perante problemas maiores, não cometeram. Também por isso, este é, por excelência, um “tema presidencial” - mas isso terá de ficar para quando houver decreto da Assembleia.
Jurista, antigo ministro.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico