Um elétrico chamado devastação
Há seis anos e meio, o grupo de moradores da Baixa e Castelo de que faço parte enviou (mais) uma carta à Câmara de Lisboa.
Antes, em 2017, tínhamos pedido o fim dos autocarros turísticos que subiam até à Sé e ali estacionavam, empancando o trânsito e a visão da catedral e transformando o dia de quem ali vive num escarcéu de escapes e buzinas em fúria. Tivemos sucesso - o executivo de Fernando Medina interditou o centro aos grandes autocarros - para vermos o espaço enfim deixado livre a ser ocupado, até hoje, por dezenas de tuk-tuks (menos monstruosos, é certo, mas igualmente abusadores, com a ineficiência cúmplice que antes caracterizava a atuação da Polícia Municipal em relação aos autocarros a replicar-se no que respeita a estas motoretas folclóricas).
Ainda embalados por essa semi-vitória, avançámos com nova missiva, em março de 2018, sobre o elétrico 28. É que, para além de ser protagonista de todos os roteiros sobre a cidade, um brinquedo encantador da lego e ficar bem em ímanes para a porta de frigorífico, o 28 é um meio de transporte, com a vantagem acrescida de ser bonito e não poluir. Ou era - até se tornar impossível: os turistas, em filas de centenas no Martim Moniz, lotam-no logo no início da viagem.
Na carta, preocupados em não dar a impressão de sermos anti-turismo (que não somos), fazíamos várias sugestões que visavam compatibilizar o interesse de quem visita a cidade com as necessidades dos habitantes. Incluindo óbvias, como o reforço das carreiras, e menos óbvias, como descer o preço dos elétricos dirigidos aos turistas (que existem) e deixar de vender bilhetes a bordo do 28 (passariam a ser vendidos em máquinas), aumentando o seu valor quando adquiridos avulso. A resposta, da autarquia e da Carris, foi do tipo “vamos ver”.
Não vimos nada, pelo que avançámos para uma petição. No momento de escrever este texto, fui ver o número de assinaturas: 750. Em seis anos e meio, e apesar da crescente preocupação com o que a escalada no turismo está a fazer a Lisboa, não chegou a mil o número de pessoas que se interessou por algo que devia ser óbvio para todos - um meio de transporte público, criado para servir as necessidades muito reais da população de uma cidade (há percursos que só o 28 faz), não pode transformar-se numa diversão exclusiva para forasteiros. Como, de resto, se passa com os elevadores da Bica, Glória, etc: nenhum habitante consegue lugar. Que se lixe a Dona Maria, de 70 anos, que mora na Rua de São Paulo e quer ir ao Calhariz a uma consulta - apanhe um táxi, ande o dobro para o metro ou fique em casa. Isto se ainda houver donas Marias na Rua de São Paulo, bem entendido - tudo se está a encaminhar, et pour cause, para a respetiva extinção.
Seis anos e meio (e muitas mais irritações) passados, parece-me claro que nenhuma medida “suave” resultará naquilo que é justo e desejável - que quem precisa de andar no 28 e nos elevadores da cidade consiga fazê-lo em tempo útil e sem padecer de picos de tensão alta.
E nem é preciso inventar, basta copiar. Aliás, lembro-me de na altura da discussão sobre o conteúdo da carta, ou numa das reuniões com a autarquia, ter mencionado o exemplo de Veneza, uma cidade que lida, há muito mais tempo que Lisboa, com um imenso afluxo de turistas: nos vaporettos, os barcos que constituem o transporte público naquela cidade de canais, não só existe precedência para os habitantes como essa precedência é baseada na posse de um título de transporte com um preço especial. Ou seja: quem tem esse título de transporte mais barato tem uma via verde para entrar no barco. Trata-se de uma dupla discriminação, já que o preço do título é fixado em função quer do local de residência quer do tipo de relação que se tem com Veneza - os que nela trabalham ou estudam têm também uma tarifa reduzida.
A cidade encontrou assim uma forma de tentar compatibilizar a sua atractividade turística com a vida dos seus habitantes (ou seja, com ser cidade), não admitindo que a primeira transforme a existência dos segundos num martírio ou até numa impossibilidade - deveriam chegar ao trabalho ou à escola a nado?
Se bem me recordo, houve quem, ante a minha referência a esta política veneziana, tivesse torcido o nariz ao caráter discriminatório da medida e colocasse dúvidas sobre a legalidade. É verdade que é discriminatória. Mas o problema com as discriminações não é serem-no, é não se justificarem. Por exemplo, é discriminatório que os residentes com automóvel próprio tenham dístico de estacionamento para o seu bairro. E é discriminatório que as pessoas com deficiência, ou grávidas, ou idosas, ou com bebés de colo possam passar à frente das outras nas filas. Mas num e noutro caso não temos dificuldade em perceber a justificação.
A mesmíssima lógica se aplica no caso do 28, e dos elevadores ex-libris da cidade: na verdade, o que se passa neste momento é que existe uma discriminação negativa dos que necessitam diariamente de usar esses meios de transporte: são impedidos de o fazer. Deveria ser evidente para quem gere a cidade (partindo do princípio de que alguém o faz, o que nem sempre parece o caso) e supostamente também dita as prioridades da Carris que isso não é aceitável. E deveria ser evidente para todos nós que, se a Câmara de Lisboa nem para certificar que um elétrico e três elevadores não são transformados em baratíssimas “experiências” recreativas à custa dos lisboetas serve, dificilmente servirá para alguma coisa.
Nota: Em resultado da petição referida - Propostas para um elétrico 28 mais digno e mais fiável, servindo melhor residentes e visitantes - e do facto de ter recolhido mais de 250 assinaturas, deu entrada na Assembleia Municipal de Lisboa (AML), tendo os peticionários sido ouvidos na 8ª comissão permanente (Comissão de Transportes, Mobilidade e Segurança), que chamou também a Carris a pronunciar-se. No seu relatório, datado de abril de 2019, a dita comissão fez algumas propostas à AML, para que esta efetuasse recomendações à Câmara de Lisboa (enquanto acionista única da Carris). Entre essas propostas, constava "avaliar a possibilidade de implementar o uso exclusivo de passes no acesso ao elétrico 28 em parte dos horários de forma alternada (...) como forma de privilegiar os utilizadores frequentes". Até hoje, porém, nada de semelhante foi feito.