Um alerta com mais de meio século
Para contestar que os juízes fossem recrutados de entre agentes do MP - como o eram em 1973 - teria bastado na altura dizer que, nesse corpo, a selecção se fazia, à entrada, com recurso, legalmente regulado, a informação da PIDE. Como em relação a toda a Função Pública, a polícia política pronunciava-se através de modelo próprio, que pelo menos nos últimos anos era da Papelaria Fernandes, especialmente concebido para poder intervir mesmo em processos de “concurso”.
Quando numa das suas colunas era aposto “Não dá garantias de cooperar com os fins superiores do Estado”, com um carimbo da PIDE e uma rubrica ilegível, era motivo suficiente para “desaparecer em concurso”, sem sequer haver lugar - em muitos casos, pelo menos, assim aconteceu - à notificação do interessado. Era um mal banalizado, com algum toque kafkiano…
Mas para além de denunciar, mais uma vez, essa prática, que ia já então em muitas décadas, nas conclusões do III Congresso da Oposição Democrática deu-se relevo a uma outra razão: esse seria sempre um “mau campo de recrutamento” já que - resumia-se - “adquirem os mesmos agentes do Ministério Público uma visão deformada dos arguidos, pelo exercício prolongado das funções de acusadores públicos”. E aduzia-se ainda que, com essa solução, “agravam-se os problemas da sua independência, desde os graus inferiores para os graus superiores da respectiva hierarquia” (cf. B-Organização Judiciária, b e c).
Surpreende, à luz disso, que menos de uma década depois na Constituição da República, na revisão de 1982, se tenha consagrado o acesso dos magistrados do MP ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de par com os juízes - uma solução que seria dificilmente pensável no texto saído da Constituinte (1976).
Ainda por cima, ao tempo, era o texto nela aprovado que dispunha que “os agentes do Ministério Público” eram, contrariamente aos juízes, “responsáveis e hierarquicamente subordinados” - e , recorde-se, a “autonomia” só sete anos depois da “constitucionalização” do acesso do MP ao STJ encontraria lugar no discurso constitucional.
Obviamente não se estaria a pensar, com essa inovação, em “agentes” apenas com meia dúzia de anos de serviço no MP. Mas sendo assim, por maioria de razão, a “deformação” de perspectiva profissional e o efeito invocado resultante da prolongada inserção em linha hierárquica, então pressuposta, só poderiam constituir argumentos ainda mais fortes.
Esse passo, tão pouco estudado, dado na revisão de 82, viria a fundar uma das traves constitucionais da actual composição do STJ.
Atenção: não poderia nunca pôr-se em causa o acesso ao STJ de juristas procedentes do MP na base do mérito (e a Constituição é clara sobre isso), como se constitucionalizou então, ao mesmo tempo, em relação a outros “juristas de mérito”, desde que salvaguardado idêntico nível de exigência. Isso teria sempre plena legitimidade e justificação (registe-se, aliás, que antes e depois do 25 de Abril, juristas de incontroversa grande capacidade técnica - incluindo um bom número de juízes ! - prestaram serviço no MP).
O que estava em apreço, e ficou assim “inscrito na pedra” constitucional,com carácter prévio em relação à própria autonomia, foi uma verdadeira - e bem discutível - manifestação precoce de “paralelismo”, no acesso ao STJ, entre juízes e procuradores.
O resultado foi que, na fase subsequente, sob o registo constitucional assim adquirido, ao mesmo tempo que ficava por erguer o pilar dos “juristas de mérito”, se ergueu do outro lado, de forma constante, o pilar dos procuradores - num processo que pode ser considerado de “desfiguração constitucional” do STJ.
Isto a acrescer a uma opção constitucional já ela contrastante com o que tinham querido e claramente enunciado os que defendiam a democracia (1973). Como até à alteração legislativa de 2008 as vagas não preenchidas previstas para os “juristas de mérito” acabaram por ser preenchidas não só por juízes, como também por procuradores, dá para perceber a dimensão da “divergência”, não só com o modelo prefigurado, mas com o essencial das preocupações explicitadas nas conclusões do Congresso de 1973. O avolumar de acórdãos do STJ ditando a última palavra em matéria penal assinados por conselheiros tendo atrás de si uma vida inteira de procuradores - às vezes todos - não atira para o cesto dos papéis o alerta constante das conclusões do Congresso de Aveiro: confere-lhes uma nova actualidade.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.