Otto von Bismarck terá sido uma das personagens mais contraditórias e fascinantes do século XIX. Não só por ter encabeçado o processo de unificação da Alemanha e ter sido o pai de um esquisso de estado social, mas, mais notável ainda, pela capacidade de sobreviver a conjunturas, maiorias, tensões diplomáticas e guerras – e até às suas mais arreigadas convicções e enfáticas proclamações. Conseguiu fazê-lo, de certo modo, porque o rei da Prússia e primeiro imperador alemão, Guilherme I, o impôs ao Reichstag, e porque, tendo granjeado o apoio do Reichstag, se impôs a Guilherme I. Além disso, soube ser aquilo que hoje se designaria, elogiosamente, por um habilidoso: conforme lhe conveio, foi o militar que envergou a sobrecasaca civil e o estadista parlamentar que ostentou o uniforme de oficial do exército. Foi tudo e o seu contrário. Raposa e leão, como, antes dele, Maquiavel se referia aos homens de Estado. Assumiu o papel principal na transformação da Alemanha numa monarquia constitucional com separação de poderes, apesar de, como o próprio confessaria mais tarde, ter procurado arruinar o parlamentarismo através do parlamentarismo. Desconheço se o velho kaiser é fonte de inspiração para quem povoa o nosso espaço público, mas recordo-me regularmente dele devido à maleabilidade de muitos dos nos mimam ininterruptamente com comentários urdidos a pensar nas redes sociais. Sinais dos tempos: as homilias televisivas dominicais de quem hoje nos pastoreia a partir de Belém deram lugar aos sermões de uma legião de apóstolos das grandes plataformas digitais. Investidos de certezas inabaláveis, guindados por uma semântica adaptada a consumidores preguiçosos, viciados numa métrica rotineira e munidos de legendas coloridas - a fazerem lembrar os anos dourados do Comic Sans -, estes beneméritos da congregação de S. Algoritmo não vivem fora do processo de evangelização. Capitularam perante aquilo que, em tempos, abjuraram. Prescindiram da reflexão ponderada em detrimento do soundbite pronto a usar, tendo o engagement como princípio, meio e fim. Sacrificaram a elaboração no altar da simplificação, onde em três minutos (ou menos) nos explicam o mundo desde o Big Bang até ao Apocalipse que se anuncia num Reels. Ainda sou do tempo em que, individualmente ou em coro, estes Joões Boscos nos garantiam que as democracias ocidentais sucumbiriam às mãos do populismo e em particular pelas falanges distais dos nossos jovens, cárceres do Instagram, das stories, das trends e da viralidade. Isto, porventura, antes de se aperceberem do potencial da TikTokização do seu ofício. Sou igualmente do tempo em que todos estávamos convocados para proteger as instituições, a República, a Europa o planeta e toda a Via Láctea do voto desinformado de quem se desligou da comunicação social de referência, rendida, paradoxal e inexoravelmente, a fenómenos que o são apenas por serem novos ou que aterram em estúdios de televisão depois de eclodirem no pântano das redes sociais. Salvo honrosas exceções, o cenário não é abonatório para o homoanalista, em fase adiantada no seu processo de regressão para homoentertainer, nem para quem lhe dá guarida. O darwinismo tem sido cruel para os que, à falta de ethos e renunciando a qualquer módico de logos, se agarram a umas sobras de pathos para alimentar aqueles que prometeram combater. Ainda antes da era em que a política obedece ao scroll, quando não se mesclava com vídeos de gatinhos ou com anúncios sobre 1001 formas de manter um healthy lifestyle, Bismarck erguia e revia preceitos, determinava e revogava padrões. Mais que o estadista, o homem nunca terá tido tantos seguidores no nosso espaço público. Ou followers, perdão. Consultor de comunicação