Embora a origem da expressão seja incerta, é certo que a política de terra queimada como estratégia militar remonta à Antiguidade. Nessora, egípcios e mesopotâmicos destruíam as culturas agrícolas dos seus inimigos, obrigando os sitiados a escolher entre a capitulação e a fome. Esparta, durante a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), destruiu colheitas, pomares e vinhas durante o cerco a Atenas, numa tentativa de forçar os atenienses a sucumbirem perante a fome. Os romanos, tecnicamente deveras avançados, tornaram-se verdadeiros mestres desta política, destruindo campos, colheitas, gado e, inclusive, cortando ou envenenando as reservas de água inimigas. Os trâmites destas campanhas serão bem conhecidos dos entusiastas de banda desenhada, afinal, é nelas que René Goscinny e Albert Uderzo se inspiraram para escrever as famosas aventuras de Astérix. Então, na batalha contra os Cadurci, durante as Guerras Gálicas (58-50 a.C.), Júlio César corta o abastecimento de água ao inimigo para forçar a sua rendição e, em 52 a.C., quando o chefe gaulês Vercingetórix ordenou que todas as aldeias e quintas vizinhas fossem queimadas para impedir que as forças romanas avançassem com alimentos e materiais, os romanos resistiram e acabaram por derrotar os gauleses após um longo cerco à fortaleza de Alésia..Anos mais tarde, durante a terceira invasão francesa (1810-1811) e sem que nos livrássemos do terrível número de assassínios, violações e maus-tratos à população civil, da destruição de culturas e aldeias, das pilhagens das cidades e vilas ou das fugas em pânico de multidões, fomos nós, portugueses, a socorrermo-nos dessa tática milenar. Assim, vencemos. Contudo, ao praticar a política de terra queimada - indispensável para travar o avanço dos franceses -, Portugal ficou mais pobre. Nesse tempo, esse sacrifício justificava-se, mesmo que nem sempre tivesse sido bem aceite. No fim de contas, tratava-se de preservar a nossa independência..Entretanto, esta política de matriz militar foi traduzida para os mais variados domínios, como no mundo empresarial, onde a política de terra queimada se traduz numa estratégia que recorre à venda de ativos valiosos, à acumulação de dívidas significativas ou a promessas de compensações substanciais aos gestores em caso de demissão para tornar a empresa menos atrativa e, consequentemente, dissuadir tentativas de aquisição hostil por parte de outra. No entanto, o cerne da questão é - parece-me - que se começa a verificar uma banalização de uma estratégia que deveria ser empregue como último recurso. Recordo: aquando da invasão francesa, justificava-se, mas qual é a justificação para a empregar, inconsequentemente, nos dias que correm?.Francamente, não encontro justificação. Não compreendo como se passam décadas a procurar soluções convergentes e outras tantas a destruir pontes e a erguer muros..Mais, efetivamente, uma política de terra queimada pode até resultar e servir o propósito de quem a pratica, mas a troco de quê? Da insatisfação dos cidadãos? De instabilidade governativa? Da degeneração das instituições democráticas? Não sei qual a elasticidade da crescente polarização da sociedade, porém, sei que não é sustentável. Não resolverá nem os desafios da ética e da transparência, nem os desafios da defesa, nem os desafios do SNS, nem os desafios das infraestruturas..Este ano será extremamente exigente. Entre Europa, Estados Unidos, Rússia, Índia e outras, 2024 baterá recordes quanto ao número de eleitores a serem chamados às urnas. Deste modo, leituras como A Paz Perpétua de Immanuel Kant ou Os Catorze Pontos de Woodrow Wilson - pilares basilares da ordem liberal em que vivemos - seriam, certamente, inspiradores para todos. Todavia, proponho apenas que, neste novo ano, seja na condução do país, de uma empresa ou das nossas vidas, estejamos abertos ao diálogo e sejamos capazes de reconhecer as preocupações das partes e comprometermo-nos com a mudança, porque uma terra queimada é uma sociedade minada.