Teremos saudades de Marcelo?

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Quando Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito Presidente da República, em 2016, muitos viram nele uma lufada de ar fresco após dez anos de Cavaco Silva em Belém. A sua “política de afetos” foi inicialmente bem acolhida pela maioria dos portugueses, contrastando com o estilo austero do seu antecessor. Marcelo Rebelo de Sousa trouxe para Belém uma forma diferente de estar na política, marcada por proximidade, emoção e espontaneidade.

Marcelo pode ser considerado o primeiro populista eleito para um alto cargo em Portugal nas últimas décadas, se adotarmos a abordagem performativa ou sócio-cultural do populismo, proposta por autores como Pierre Ostiguy e María Esperanza Casullo. Nesta perspetiva, o populismo performativo é uma forma de atuação política em que o líder constrói uma relação direta e emocional com o público, recorrendo a gestos simbólicos, linguagem informal e teatralidade para se apresentar como próximo do “povo” e distinto das elites tradicionais. Em vez de se basear em discursos anti-sistema ou propostas radicais, este tipo de populismo foca-se numa imagem de autenticidade, na quebra dos protocolos institucionais e na valorização da presença mediática. O político populista performativo posiciona-se culturalmente como alguém irreverente, emocionalmente acessível e capaz de traduzir sentimentos coletivos em gestos públicos. Essa performance pode ter efeitos emancipadores, ao incluir segmentos da sociedade que se sentem distantes da política formal.

Marcelo encaixa neste perfil: telefona para programas da manhã, distribui selfies, demonstra emoções em público e fala diretamente com cidadãos de todas as classes sociais. Mas ao contrário de figuras como André Ventura, Donald Trump ou Marine Le Pen, que tiram proveito do descontentamento social, Marcelo apostou num populismo ao centro - emocional, mas conciliador; irreverente, mas institucional. Nunca rompeu com o politicamente correto nem com o sistema que o formou. É, afinal, um produto da elite política, académica e mediática do seu tempo. Filho de um ministro do Estado Novo, foi diretor do Expresso, professor universitário, líder do PSD, comentador político e, até, presidente da Fundação da Casa de Bragança, que gere o vasto património deixado pelo último rei de Portugal.

Esta forma de estar contribuiu para a eleição de Marcelo e para a sua popularidade enquanto Presidente, apesar de algum desgaste de imagem nos últimos anos, sobretudo após o fim da coabitação com António Costa (“éramos felizes e não sabíamos”, admitiu em dezembro último) e do caso das gémeas luso-brasileiras. Resultou particularmente bem nos primeiros anos, porque Marcelo sucedeu a uma presidência mais distante e formal, mas também porque, em 2016, a polarização ainda não dominava o espaço público português, apesar das feridas abertas pela intervenção da troika e pelo surgimento da geringonça. Hoje, o centro político está em erosão, num fenómeno que noutros países - como os EUA - já se consolidou. Os discursos conciliadores e humanistas enfrentam cada vez mais resistência, e os líderes que os defendem são frequentemente atacados por ambos os extremos.

O caso recente do governador do Utah, Spencer Cox, é ilustrativo. Após o assassinato de Charlie Kirk, durante um evento universitário em Utah, Cox apelou à reconciliação nacional e à rejeição dos discursos extremistas. Foi imediatamente criticado à direita, por Steve Bannon, que o acusou de falta de firmeza, e por vozes da esquerda, que questionaram o facto de ter atribuído motivações políticas ao crime. A reação revela um ambiente político em que a moderação é vista como fraqueza - um terreno fértil para o caos e a degradação democrática.

A História julgará Marcelo com o distanciamento que só o tempo permite. Terá sido demasiado complacente com os governos de Costa, ou, pelo contrário, fez o que deveria? Terá falado em excesso, ou interveio quando era preciso? Esteve bem ou mal no caso das gémeas? São questões legítimas e as respostas variam conforme a perspetiva de cada cidadão. Mas é possível que, num futuro marcado por radicalismos e crispação, venhamos a recordar com saudade os tempos em que a política ainda se fazia com afeto, moderação e humanidade - e em que o centro não era apenas um lugar vazio entre extremos.

Diretor do Diário de Notícias

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