Assisti à distância graças aos relatos e mensagens enviados pelos meus amigos cabo-verdianos a um acontecimento memorável. Infelizmente, um contratempo a que fui alheio em Lisboa, impediu-me de me deslocar presencialmente até à Cidade da Praia para acompanhar os dois concertos da Orquestra e Coro Gulbenkian com o meu amigo Mário Lúcio e os maestros Rui Pinheiro e Inês Tavares Lopes. Foi um momento muito especial para celebrar os cinquenta anos da independência de Cabo Verde. E recordámos, assim, a memória de Amílcar Cabral e a sua determinada sensibilidade relativamente à cultura da língua portuguesa, bem como a lembrança viva de Corsino Fortes, ou a admiração e amizade presentes do Presidente José Maria Neves, de Ulisses Correia e Silva, do comandante Pedro Pires, de Germano Almeida, de Vera Duarte ou de Filinto Elísio. A presença da Orquestra e do Coro da Gulbenkian foi o corolário lógico da cooperação da Fundação nos diversos domínios do desenvolvimento humano, compreendendo-se que a instituição é um todo, envolvendo, como diz a famosa quadriga clássica, a educação, as artes, a ciência e a filantropia, através do trabalho das suas equipas. Tudo se articula. E foi com muita emoção que recebemos dos cabo-verdianos em geral o reconhecimento de uma amizade profunda e profícua. O presidente António Feijó e a Embaixadora Graça Andresen Guimarães exprimiram, assim, o agradecimento por um trabalho continuado de cooperação e emancipação protagonizado pelo povo de Cabo Verde. Foi com muita emoção que Mário Lúcio teve uma entrada triunfal, depois da apresentação da obra de Eurico Carrapatoso Ó Serpa. Com que entusiasmo se ouviram então Ilha de Santiago, Zita, Lua Cheia e Hino à Gratidão. A recordação de grandes autores como B. Leza, Ano Nobu, Francisco Fragoso /Djirga, Eugénio Tavares e Antero Simas, nas melodias Morgadinha, Sorriso de Nha Cretcheu, Força de Cretcheu e Doce Guerra foi emocionante. Como disse Mário Lúcio: “A música de Cabo Verde guarda segredos que a escrita ainda desconhece. Dialogando, porém, chegamos lá. Por isso, estamos todos a aperfeiçoar as invenções”. Daí a importância deste extraordinário encontro. Tratou-se de uma convergência natural, como aconteceu na classificação da Cidade Velha, como património da UNESCO. Com a participação de músicos e sonoridades de diversas origens, a Morna - património cultural imaterial da Humanidade -, foi abraçada por um mar de instrumentos, como disse Mário Lúcio, que funde saberes múltiplos e vai até patamares inexplorados - ao Brasil e América Latina. A Morabeza é sentida em toda a sua riqueza e profundidade como afeto que não se resume a uma visão idílica das coisas, antes envolvendo melancolia e tragédia, alegria, esperança e desesperança, como encontramos em Chiquinho de Baltazar Lopes, mas também na expressão romanesca de Mário Lúcio. Foi um tempo memorável o que se sentiu nessas noites inesquecíveis na Assembleia Nacional na Praia. E fica a lembrança indelével de um povo que tem sabido superar dramas e tragédias, sempre disponível, sem ilusões, para firmar os pés na terra e poder avançar… Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian