Tadzio
Era único, mas houve dois. Ou melhor, vários.
"Aschenbach viu com espanto que o garoto era de uma beleza perfeita. O rosto pálido, de uma doce severidade, enquadrado por anéis de cabelo de um alourado quente de mel, o nariz direito, a boca graciosa, a expressão de gravidade adorável e quase divina lembravam o momento mais nobre da escultura grega e, apesar da perfeição acabada na forma, os traços eram de um encanto tão pessoal, tão único, que o observador não se lembrava de ter encontrado, quer na natureza quer na arte, obra-prima tão conseguida", assim o apresenta Thomas Mann em Morte em Veneza, a breve novela que publicou em 1912, pouco antes do deflagrar da Grande Guerra. Nela, o amor e a morte cruzam-se e progridem em paralelo, o primeiro assumindo uma faceta cada vez mais carnal, à medida que a história avança, e a morte surgindo sob as vestes de uma epidemia de cólera que, por razões económicas e interesses turísticos, as autoridades tentam em vão escamotear dos cidadãos.
A personagem principal, Gustav von Aschenbach, um escritor famoso de meia-idade e há muito viúvo, apaixona-se perdidamente por um rapaz jovem, de sereníssima beleza, membro de uma família polaca hospedada no mesmo hotel que ele, no Lido, nas imediações da cidade. Na construção da personagem principal, Thomas Mann teve várias influências, umas óbvias - o Goethe da "Elegia de Marienbad" e Mahler, acabado de falecer -, outras mais controversas, dizendo alguns que se inspirou no poeta alemão homossexual August von Platen-Hallermünde, sustentando outros que se baseou em Wolfram von Eschenbach, o poeta e cavaleiro medieval, autor do épico Parsifal. O mais provável é que Aschenbach seja um compósito de tudo isso, a que se deve acrescentar uma forte marca pessoal, quase autobiográfica. Thomas Mann referia-se a ele como "o meu amigo falecido", e muitos dos traços do seu carácter são os mesmos com que o autor de Os Buddenbrook gostava de se definir (já agora, e para quem não saiba, Mann era filho de Júlia da Silva Bruhns, uma brasileira nascida em Paraty, com ascendência portuguesa).
Quanto à personagem do rapaz, o deslumbrante Tadzio, parece ter sido inspirada directamente por um jovem polaco que Mann e a mulher encontraram na sala de jantar do Grand Hôtel des Bains, no Lido, quando aí passaram uma temporada no Verão de 1911. Segundo o testemunho de Katia Mann, muitos dos pormenores da história foram retirados de episódios passados nas suas férias em Veneza, com destaque para o rapaz vestido de marinheiro que deixou o seu marido obcecado. Ao que tudo indica, esse rapaz - o primeiro Tadzio - era um jovem aristocrata da Polónia, Władysław Moe, de seu nome completo Władysław Gerard Jan Nepomuk Marya Moe, a quem tratavam pelo petit nom de Władzio, ou apenas Adzio.
Adzio nascera em 1900, no palácio da sua família, nas cercanias de Wierbka, no Sul da Polónia, e era filho de um nobre senhor de vastas terras e fábricas e da condessa Janina Miączyńska. Em 1911 - com 11 anos, portanto, e não os 13 ou 14 de que geralmente se fala -, os médicos aconselharam-lhe uma estada ao sol meridional e, na companhia da família, o menino instalou-se no Lido, em Veneza, no sumptuoso Grand Hôtel des Bains. Foi lá que, então ainda mal refeito do suicídio da irmã no ano anterior, Thomas Mann o viu e por ele ficou assombrado, como se descreve no livrinho The Real Tadzio: Thomas Mann's Death in Venice and the Boy Who Inspired It, que o novelista escocês Gilbert Adair deu à estampa em 2003.
Como era próprio das crianças da sua condição, Adzio foi educado em casa, por tutores privados, antes de se matricular num liceu de Varsóvia. Em 1920, voluntariou-se para combater no conflito entre a Polónia e a União Soviética que culminou na partição dos territórios ucranianos e bielorrussos e, depois disso, foi administrar as terras que herdara do pai. Casou-se em 1935, teve dois filhos, mas, em 1939, aquando da invasão nazi da Polónia, foi feito prisioneiro no decurso da sangrenta batalha de Bzura, que, só do lado polaco, fez cerca de 20 mil mortos, 32 mil feridos e 170 mil presos, uma carnificina. Passaria os próximos seis anos internado num campo alemão de prisioneiros, por certo em condições duríssimas, sendo libertado apenas no final da guerra. Nem isso, porém, lhe trouxe a merecida paz: o regime comunista instaurado em 1945 confiscou-lhe todas as propriedades e Adzio teve de ganhar a vida como tradutor, trabalhando para a Embaixada do Irão em Varsóvia. Só em 1964, numa entrevista a uma revista alemã, concedida ao tradutor polaco de Thomas Mann, reconheceu ter inspirado a figura de Tadzio em Morte em Veneza, afirmando que o escritor o tinha retratado tal qual ele era e como vestia, nos mais ínfimos pormenores, durante as suas férias em Itália. Assevera a Wikipédia que morreu em 1986 e, consequentemente, foi enterrado no jazigo da família, em Pilica, no Sul do país.
Falta falar do outro Tadzio. Se o virmos hoje, parece um velho druida, de longos cabelos e barbas brancas, com o rosto esquadrinhado de rugas. Aparenta mais, muito mais, do que a idade que tem, fez 66 anos há pouco, no dia 26 de Janeiro. Ainda tem vagas parecenças com o divino efebo, mas entre o homem que hoje vemos e o rapaz de outrora houve uma vida inteira de permeio, acidentada e agreste. Chama-se Björn Johan Andrésen, nasceu em 1955, em Estocolmo, e aí estudou na escola de música Adolf Frederik, almejando seguir a carreira de actor. Em 1970, entrou em Uma História de Amor Sueca (ou só Uma História de Amor), um filme hoje esquecido mas com algum sucesso na altura (à boa maneira nórdica, o realizador, Roy Andersson, entrou em depressão profunda perante o êxito da sua obra).
Por essa altura, Luchino Visconti andava em frenética demanda do rapaz que encarnaria Tadzio na adaptação cinematográfica do livro de Mann. Hungria, Polónia, Finlândia, vasculhou meia Europa em busca do jovem ídolo, até chegar a uma audição em Estocolmo, no ano de 1970. Björn era o quinto ou sexto rapazinho que entrou na sala onde se encontrava o realizador, tinha já 15 anos e era mais alto do que o requerido para o papel, mas a sua aparição teve o efeito de um coup de foudre e, ao fim de um minuto, Visconti estava seduzido, como o próprio reconheceu no documentário Alla ricerca di Tadzio, também desse ano de 1970. Paixão não diferente da que Mann tivera pelo polaco Władysław/Adzio ou que, em Morte em Veneza, Aschenbach tivera por Tadzio. Sempre ele, Tadzio, único mas vários.
A vida foi madrasta para Björn Andrésen, o Tadzio sueco. A mãe suicidara-se tinha ele 10 anos e, aos 13, descobriu que o homem com quem vivia era seu padrasto, não pai biológico. Depois, entrou no filme de Visconti, estreado em 1971, correndo a história, talvez fictícia, de que Miguel Bosé tinha sido escolhido para o papel mas que o seu pai, o viril toureiro Luís Miguel Dominguín, se opusera a que o filho entrasse numa fita situada nas raias da pederastia. Consta também que Helmut Berger aspirava loucamente o papel e que terá sido ele a pôr a circular uma série de boatos maldosos sobre o jovem sueco, como, por exemplo, aquele que dava conta de ter sido ele, em 1976, o autor do brutal e estranho homicídio do não menos estranho actor Sal Mineo, celebrizado em Rebeldes sem Causa (no final das investigações, foi dado como culpado um entregador de pizas).
"O rapaz mais belo do mundo." Foi assim que, na conferência de imprensa de apresentação de Morte em Veneza, no Festival de Cannes, Visconti apresentou a nova estrela. Depois da première, levaram-no a um clube gay, e Björn recorda-se que foi aí que começou a beber, iniciando uma descida aos infernos marcada pelo alcoolismo e por anos de psicoterapia. A seguir, o Japão, onde, segundo o próprio, foi drogado durante semanas, para aguentar a exploração a que o sujeitaram. Em terras nipónicas, fez furor como bishōnen (um rapaz que, pela sua beleza transcendente, ultrapassa as fronteiras de género), gravou discos, participou em anúncios comerciais e programas de televisão, inspirou personagens de anime, com destaque para uma surgida em O Poema do Vento e das Árvores, de Keiko Takemyia, publicado entre 1976 e 1984.
Ao contrário do que muitos julgavam, nunca foi homossexual, apesar de ter dito que foi usado como objecto sexual gay durante o ano que viveu em Paris, na expectativa de entrar num filme de Malcolm Leigh que nunca chegou a ver a luz do dia. Susi Wyss, uma beleza felina da época, cortejada pelo barão Rothschild, amiga de seres bizarros como Paul Getty, Iggy Pop ou Dennis Hopper, recordou que uma noite, na discoteca Le Sept, a entrada de Björn quase provocou um motim entre os seus fãs de ambos os sexos. À escritora Alicia Drake, autora de The Beautiful Fall: Fashion, Genius, and Glorious Excess in 1970s Paris, um cativante relato da rivalidade entre Karl Lagerfeld e Yves Saint-Laurent, Susi Wyss deixou uma recordação mais íntima, e nada casta: "I thought he was homosexual, but he fucked me beautifully."
Estreou há dias no Festival de Sundance um documentário sobre a figura trágica de Björn Andrésen, "o rapaz mais bonito da Europa", como lhe chamaram as revistas cor-de-rosa dos anos 70. Kristina Lindström e Kristian Petri, os realizadores desse documentário, demoraram cinco anos a convencer Björn a falar da sua existência turbulenta. Hoje, aos 66 anos, e apesar de algumas aparições no cinema e em séries televisivas, Björn vive num apartamento em Estocolmo, imundo e minúsculo, de onde, aliás, esteve prestes a ser despejado. É a namorada que o tem salvado das embrulhadas em que constantemente se mete e dos fantasmas que amiúde o sobressaltam.
"E ainda nesse dia um mundo respeitoso e chocado recebeu a notícia da sua morte", assim termina a novela de Mann, narrativa da paixão doentia e dos dias do fim de um escritor de meia-idade. Talvez um dia recebamos também a notícia da morte de Björn Andrésen, o Tadzio de Estocolmo. Mas, por ora, a lição que fica da sua atormentada existência é que, por vezes, às vezes, vezes de mais, beleza não é fortuna, antes tragédia.