Sou candidato!

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Calma, não me interpretem mal! Tenho mais de 35 anos, mas sou sensato, profundo conhecedor das minhas limitações e tenho horror ao ridículo. A nossa Constituição permite a qualquer cidadão português com mais de 35 anos e no gozo de todos os seus direitos civis e políticos, desde que arranje 7500 assinaturas de proponentes, candidatar-se à Presidência da República. E ainda por cima, se o candidato tiver mais de 5% de votos dos portugueses recebe um subsídio para pagar a campanha.

Para este mais alto cargo político da Nação, não são exigidas competências específicas, como sejam experiência política, conhecimentos sólidos na área económica, jurídica e de geo-estratégia global. E também capacidades de comunicação, empatia e liderança. Sendo assim, qualquer português com um mínimo de notoriedade e com uma dose absurda de vaidade e ambição de protagonismo, pode pensar: por que não?

Porque não um médico-cirurgião, como eu? Que passou anos em programas de televisão que o tornaram conhecido, e que foi um dos pioneiros da transplantação de órgãos em Portugal? Que criou e geriu um Centro de Referência para tratamento de doenças graves e complexas do foro hépato-bilio-pancreático de prestígio internacional. Facilmente conseguiria 7500 assinaturas, quanto mais não fosse dos familiares, dos amigos, e de muitos das dezenas de milhares de doentes que foram tratados sob a minha responsabilidade. E que certamente conseguiria 5% de votos que lhe garantiriam não ficar falido. Que até teria um slogan de campanha óbvio e engraçado: “Transplantar a democracia com sucesso e lancetar ou extirpar alguns podres da política.” Que tratou por tu três presidentes, e até os operou, que tem capacidade de comunicação, e que nos últimos dois anos foi eleito o médico em que os portugueses mais confiam.

Candidato a candidato era uma opção possível. Porque não me passaria pela cabeça esta loucura? Pura e simplesmente porque com a democracia não se brinca, porque o respeito pelas instituições é fundamental e, não menos importante, porque não seria competente.

Fui a votos em meia dúzia de situações e ganhei. Desde logo seis vezes para delegado de curso nos anos da faculdade, três vezes para presidente de sociedades científicas, em Portugal e na Europa, e - pasme-se - fui eleito por esmagadora votação para presidente da assembleia geral do meu clube do coração.

Para estes cargos fui a votos porque achei que merecia ganhar, sentia-me competente para os exercer, e acabei por merecer a confiança dos eleitores.

Para me candidatar a Presidente da República tenho apenas as condições legais, e a falta total de competências. Não tenho experiência política - só há pouco tempo percebi o que era o PIB e ainda hoje não percebo o que representa a dívida pública e o enorme défice. Não sei interpretar a constitucionalidade das propostas de lei, era incapaz de constituir com seriedade uma equipa de consultores e assessores competentes.

Tivemos depois da Revolução de Abril cinco Presidentes eleitos pelos portugueses em dez eleições livres e democráticas. Em sete votei no vencedor, mas reconheço que mesmo quando votei no candidato derrotado, o vencedor fazia sentido. O facto de a nossa Constituição permitir a muitos portugueses a possibilidade de se candidatarem, não obsta a que, a cada um, não seja exigido uma análise séria das suas capacidades.

Ter muita notoriedade, ser reconhecido pela maioria dos portugueses, pode ser uma ajuda. Cristiano Ronaldo, Cristina Ferreira, Herman José ou Ricardo Araújo Pereira são talvez dos portugueses com mais notoriedade em Portugal, e competentíssimos nas suas actividades profissionais. Se algum deles se candidatasse a Presidente da República teria certamente mais de 5% de votos, se calhar até passariam a uma eventual segunda volta, mas o simples facto de se quererem candidatar seria brincar com a nossa democracia.

Portanto eu sou candidato. Sou candidato a votar em alguém que eu tenha a certeza de que defende, com convicção, os valores da nossa querida democracia. A votar em alguém que tenha fundamentada experiência política, e seja um defensor convicto do nosso Serviço Nacional de Saúde. Em alguém que tenha conhecimentos sólidos de economia. Em alguém que conheça a fundo a Constituição, que eu saiba que a vai sempre defender e respeitar, e tenha sólida cultura jurídica. Que seja culto(a) e sensível, que respeite e prestigie as instituições e seja um moderador e um pacificador social. Que não tenha tiques autoritários ou populistas e seja um profundo conhecedor da realidade do mundo actual.

Coerente com o que acabei de escrever, sou portanto apenas candidato a votar em alguém que eu saiba que tem, entre outras mais, as qualidades que referi. Nunca votaria num candidato como eu, porque, a sê-lo, o consideraria impreparado, megalómano, vaidoso e incompetente. E, não menos importante, por não ter tido o bom senso e a decência cívica de saber que nunca se deveria ter candidatado.

Cirurgião.

Escreve com a antiga ortografia

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