Sobre literacia(s): podemos falar, sr. ministro?
A proposta de uma nova disciplina no Secundário, Literacias, integrada nos projectos-piloto de inovação pedagógica das escolas que participem desses projectos, é uma notícia interessante e que, pelo que se lê no Despacho n.º 9128/2024, tem como fito, para resumir o espírito deste documento, levar a que os estudantes leiam mais e melhor.
É claro que o discurso pedagógico continua a ser o mesmo de sempre: implementar “soluções inovadoras que contribuam para a construção de uma escola inclusiva, reduzindo o abandono e aumentando o sucesso educativo.”
No documento em apreço sublinhe-se um facto curioso: aí se diz que “os cursos científico-humanísticos” constituem a oferta “mais direccionada para a preparação dos alunos para o ingresso no Ensino Superior, o que leva a uma abordagem mais conservadora no ensino, aprendizagem e avaliação.” Considerando que igualmente nos cursos profissionais há espaço para projectos que “ampliem o leque de opções dos alunos”, assim reduzindo as “desigualdades no acesso ao Ensino Superior”, um dos pontos nodais deste despacho diz respeito à defesa e valorização da “identidade do Ensino Secundário” e, para tal, reitera-se, é necessário diversificar as formas de organização curricular e promover uma maior participação dos alunos, professores e demais comunidade educativa para (repete-se) “aumentar o sucesso e a equidade”. Tudo em nome de um espírito comum de acção que tenha em conta “as rápidas mudanças na sociedade, como o conhecimento em constante revisão, a globalização e o uso crescente das tecnologias digitais”.
O presente despacho, a reboque do qual se estatui a nova disciplina de Literacias, por detrás do discurso da autonomia das escolas e por detrás das alíneas que orientam a acção pedagógica dos cursos técnico-científicos (alíneas a) a f)), mais não faz que estipular como princípio geral aquilo que, de há décadas, é a uma espécie de fórmula-feita da educação: lançar novas disciplinas, novos projectos que os professores, exaustos de tanta burocracia, tentarão cumprir.
Aos alunos, em maior ou menor grau, permite-se que frequentem disciplinas - Literacias será mais uma? - que, na prática, não resolvem a questão fundamental. É que, Sr. Ministro, Sr. Secretário de Estado da Educação, quando falamos em iliteracia - seja ela literária ou científica - falamos de dificuldades básicas de leitura e de escrita que se traduzem, em muitos estudantes, na total falta de gosto pelo Saber.
A questão essencial é mesmo essa: com ou sem a disciplina de Literacias, como se pode combater a incuriosidade, a incultura, a falta de amor às artes, às letras e àquilo que - para usar palavras insertas no despacho - é a “identidade” do Ensino Secundário? Pois se um dos lados do problema da iliteracia tem que ver com as dificuldades de interpretação de enunciados complexos (o texto literário, desde logo, justamente o tipo de texto mais perseguido e menosprezado pelas sucessivas reformas do PS), de que modo uma disciplina deste teor - com esta designação - poderá ser válida para se fazer ler e escrever melhor? É que a identidade do Ensino Secundário, grau fundamental na preparação dos futuros quadros superiores do país, só existiria se, no fundo, disciplinas como Português, Filosofia e História não tivessem sido alvo de simplificações abstrusas nas últimas décadas, tudo em nome de uma ideologia que se reduziu a fazer dos professores “tarefeiros burocratas” e/ou “facilitadores de aprendizagens”.
Uma disciplina como Literacias, na verdade, não faz sentido porque, caso Português, História e Filosofia tivessem, na sua estruturação de conteúdos, uma robustez em termos de matérias a leccionar, o problema da iliteracia talvez fosse sendo resolvido com o sucesso desejado, mercê das obras que deviam constar e dos exames que, em função dessas leituras, se elaborassem.
Uma reforma educativa para diminuir o facto de os estudantes hoje não lerem e escreverem mal, isso, a meu ver, só poderia ter bons frutos: estudando a poesia, género que mobiliza a imaginação e trabalha os afectos. Lendo romances de qualidade literária de facto (por que razão não se lê hoje Aparição, de Vergílio Ferreira? Por que razão Felizmente Há Luar! se retirou do programa de Português do 12º ano?) pensando quem somos como país, como não ler a trilogia de Almeida Faria, o autor de Lusitânia? Lendo teatro e lendo autores como Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, Maria Velho da Costa (Myra é uma fábula que encantaria quem ensina e quem é ensinado), isso não seria apostar no futuro? E, a pretexto de se lerem obras fascinantes, mesmo a formação de professores nesta área não beneficiaria de uma verdadeira literacia literária?
Mas estamos no tempo do sucesso e da inovação, da inclusão e da facilitação. Saber ler e escrever sobre textos complexos: da poesia de Camões e dos sermões de Vieira à interpretação das causas e consequências das guerras mundiais; saber o que foi o estoicismo, o que significa a expressão “aldeia global”, isso que interessa? Invista-se, portanto, em estratégias democráticas que fazem das aulas algo dinâmico e enriquecedor. Aulas com profusa gamificação, com professores e alunos - tudo nos teclados e presos aos ecrãs! Tudo a aprender através de plataformas como a Kahoot!, verdadeira tecnologia para formar inteligências sensíveis e espíritos que valorizam o trabalho!
Acreditemos nesta nova disciplina: literacia financeira, política, democrática (sem História? Sem livros? Fazer literacia democrática será como? O professor doutrinando alunos?), digital (análise de dados) em regime a la carte... Mas, pergunto: não valia a pena integrar a literacia financeira em Matemática e compreender que aprender política e democracia é coisa inerente a obras como Felizmente Há Luar!, entre outras… Mas, eu bem sei - isso que importa?