Soares e o novo rapto da Europa
Imagino muitas vezes o que Mário Soares pensaria sobre este tempo que nos é dado viver, aparentemente contrário a toda a esperança. Um século depois do seu nascimento, reaprendemos como todas as vidas são incompletas, pois finita é a condição humana, mesmo quando o sonho é grandioso.
Tive oportunidade de testemunhar, o modo como o seu caráter se manteve intacto, apesar da metamorfose do mundo decorrer na direção oposta ao que ele, como socialista e estadista, sempre desejou. Soares possuía as três qualidades fundamentais que Max Weber identificava na vocação política: “paixão, sentido da responsabilidade e capacidade de avaliação”. Mas a dominante era a primeira, a paixão, essa força singular de, mesmo mergulhado em perigosa incerteza, soltar aquele “no entanto!”, começando logo a antecipar uma possibilidade de mudança positiva, em sinais, para os outros, quase invisíveis.
Quando Presidente, confessou-me que, tal como tantos na sua geração, chegara tarde à consciência da colossal ameaça para o futuro humano, representada pela colisão entre a economia desregulada e a ecologia planetária. Percorreu o país, como ocorreu na gloriosa Presidência Aberta de 1994, nunca abandonando, até ao final dos seus dias, o interesse e a preocupação com o ambiente.
A esperança de paz mundial duradoura também o seduziu, como à melhor parte da humanidade, depois do fim pacífico da Guerra Fria. Admirou o papel indispensável de Gorbachev para o abrir desse horizonte. Em 2010, só a doença o impediu de se deslocar a Portugal, onde Soares o esperava, com outros admiradores do estadista russo, para uma homenagem.
Infelizmente, os EUA não se tornaram uma força hegemónica benigna. Senti-me sempre reforçado ao verificar, em momentos cruciais, como estivemos juntos na recusa dos bombardeamentos ilegais da NATO contra Belgrado (1999). Na condenação da criminosa invasão do Iraque (2003). No alerta à UE para o perigo de ser raptada por uma NATO transformada em instrumento de uma América agressiva. Nem a presidência Obama interrompeu esse curso.
Recordo-me de estarmos juntos, entre 2011 e 2014, em iniciativas na luta contra uma Bruxelas que trocou a via da integração democrática, caminho da paz e da justiça, pela austeridade do euro como muralha da plutocracia financeira e neoliberal. Mas, mesmo aí, seria difícil imaginar esta Europa sem alma, trocando a paz, a justiça e o ambiente, pelo mais patético belicismo, e uma obediência cega a quem se senta na Casa Branca.
Como cidadão sinto que Soares faz falta. Como amigo, sinto que ele, visionário do futuro, não mereceria este Portugal conformado, servil e plano em que desaguámos.