Síria e notícias que já não o são
A atualidade da Síria é mais uma excelente ideia ocidental, esta de se regozijar com o facto de um terrorista procurado, pela sua atividade na Al-Queda e com o Estado Islâmico e com uma recompensa de 10 milhões de dólares por informações que levem à sua captura (que agora, presume-se, será mais fácil de reclamar), seja a sua nova liderança. Quase tão boa como enviar para o Ruanda imigrantes no Reino Unido ou como retirar à pressa do Afeganistão.
Na verdade, é sempre o tempo político acelerado das frágeis democracias ocidentais e a sua dependência comunicacional a mandar. Não que haja alternativas melhores: mas seria bom que essa realidade não fosse confundida com justificações mirabolantes, como ver na mudança na Síria uma derrota de Putin ou o fim de uma ditadura sanguinária... Até porque provavelmente não há sequer nenhuma mudança na Síria. Foi o até agora governador de facto de uma província a assumir a aparente liderança do Estado ou do que quer que exista ao fim de mais de uma década de Guerra Civil. E, já agora, responsável por massacres diversos de civis e por outros tantos atentados terroristas, sob a capa de cumprir o seu grandioso dever de acabar até com os muçulmanos hereges e de impor algum tipo de ordem naquele território.
Apesar de algumas entrevistas a televisões ocidentais terem retratado como meros erros de juventude, esse seu passado tão recente, Al-Jolani afirmou claramente que o governo talibã no Afeganistão após 2021 é o seu ideal de governação. Como disse, “uma inspiração”. Ainda assim, todo o Ocidente espera que, a troco de um Estado, possa aplacar as suas convicções e ser o pragmático que sabe navegar entre as expectativas e os deveres internacionais e a malha de vínculos e compromissos internos. E até trazer paz, essa longínqua ideia há demasiado tempo, mesmo se com um preço totalmente incerto.
Dito isto, a Síria é, como sabemos, só mais um território daqueles que são catapultados para as notícias e delas desaparecem, sem que tal signifique nada mais do que cansaço mediático e falta de novidades. Os poucos ocidentais que ainda veem televisão, ao final do dia, nas suas casas nos arredores de Dusseldorf ou de Haia, estranhamente, têm um interesse limitado pela sucessão de marcas como Al-Nusra, Jabhat Fatah al-Sham ou Hayat Tahrir al-Sham... Como a Síria, pode-se apontar o Haiti, Myanmar, a Somália e tantos outros espaços sem Estado, sem paz, sem ordem, sem lógica, sem decência.
O Haiti é um bom exemplo. Segunda-feira foram mortas na capital 110 pessoas por ordem de um dos senhores da guerra na capital. Afinal, um dos seus filhos tinha morrido, doente, e seguramente tal sucedeu na sequência de um feitiço, que tinha de ser vingado. E foi. Retiraram das suas casas pelo menos 110 velhos, reuniram-nos numa praça e mataram-nos com catanas e facas. Isto da vida valer alguma coisa ainda seria um bom tema de conversa.