Singular encontro

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Há na história do Centro Nacional de Cultura uma fotografia muito especial que tem a ver com Glória de Matos e Fernando Amado e a paixão pelo teatro. Aqui nasceu o Grupo Fernando Pessoa, que levou a encenação de “O Marinheiro” do autor da Mensagem ao Rio de Janeiro em 1962. Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinícius de Morais e César Augusto estão com a representação portuguesa: Glória de Matos, João d’Ávila, Isabel Ruth, Manuela de Freitas, e Norberto Barroca. Manuel Bandeira dedica um livro a Manuela de Freitas. O encontro é fantástico. Está-se numa singular convergência no seio da língua portuguesa, em homenagem ao teatro e à literatura. Fernando Amado era o encenador. Foi alguém com uma obra multifacetada e uma relação fraterna com Almada Negreiros, reveladora de uma geração fecunda. Glória de Matos, que agora nos deixou, foi exemplo de um especial talento artístico e pedagógico. Com genuíno encanto, ouvimos da sua boca histórias desconcertantes do seu tempo, como a do agente da polícia política, que lhe fez o interrogatório, antes da partida para o Brasil sobre o que iam fazer, quem ia, o que representariam, quando?, onde? porquê? E a dado passo, perguntou: E o Senhor Fernando Pessoa também vai? Atónita, a jovem artista respondeu: – “Não, o Senhor Fernando Pessoa já faleceu”. De imediato o agente fez um gesto de se levantar ligeiramente e apenas disse: “Os meus pêsames, minha senhora.”

A experiência do Grupo de Fernando Amado foi inolvidável, daí sairia a Casa da Comédia. Um dia, decorrendo o ensaio da peça Deseja-se Mulher 1 mais 1 = 1, a que o autor, Almada Negreiros, assistia, no fundo da sala, este pediu a palavra para assinalar uma discordância. Amado reparou, mas continuou como se nada fosse. Almada insistiu uma e duas vezes. Então Amado olhou para o seu grande amigo e disse apenas: “Não interrompa por favor” e continuou a sessão. Quando terminou, Almada não insistiu, e saíram ambos em amena conversa, Chiado abaixo.

Glória de Matos foi minha professora de Teatro, no Liceu Pedro Nunes. Foi sempre uma grande amiga, desde que veio de Inglaterra, onde frequentou a Bristol Old Vic School of Theatre, com uma Bolsa da Fundação Gulbenkian. O seu método inovador foi extremamente útil para todos quantos dele beneficiámos. Entre Gil Vicente e Tchekov, aprendemos a arte de dizer, mas também a ler, a comunicar e a compreender os textos, tornando-os disponíveis para todos, sabendo colocar a voz, representar e lidar como o nosso corpo… Foi uma experiência inolvidável, graças a Maria do Céu Novais Faria, uma professora exemplar, que trouxe até nós a grande profissional que despontava e que permitiu que a aprendizagem da literatura se tornasse um meio ativo de irmos além do lugar comum, ligando a hermenêutica e a oratória, não deixando a língua numa posição marginal e formalista. Aliás, o professor Rómulo de Carvalho comparava uma boa aula a uma verdadeira encenação teatral, que este cuidava especialmente. Glória de Matos tinha a grande capacidade de aliar a humanidade, o conhecimento e a sabedoria. No Centro Nacional de Cultura, no ciclo Os Portugueses ao Encontro da Sua História, com ela fomos à Índia e visitámos a Jordânia e o Cairo. Foi uma amiga inesquecível que continuará bem presente.

Presidente do Conselho das Artes do Centro Nacional de Cultura

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