'Silly Season', ou os fogos de Inverno

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Assim que os dias começam a ser mais longos que as noites e os termómetros começam a registar temperaturas mais altas, os portugueses são assaltados por um conjunto de intervenções cujos autores saem de um invernal turpor, estado letárgico que habitualmente os volta a afectar no Outono, salvo se estiverem a desenvolver algum “estudo”.

Enquanto a maior parte de nós, urbanos assumidos, vivemos o período anual de férias, a comunicação é dominada por uma linguagem própria desta época, linguagem essa que se vai, ela própria, transformando. E, nessa transformação, vai perdendo a alma e o sentimento.

Os fogos florestais são, agora, fogos rurais.

Os aviões e os helicópteros são, agora, meios aéreos.

A frente de fogo é, agora, o teatro de operações.

Os acendimentos passaram a ser ocorrências.

Os estados de prontidão vão evoluindo ao ritmo da evolução da temperatura.

Os Bombeiros passaram de Soldados da Paz a operacionais.

Até quem não faz ideia do que seja um hectare fala de milhares de hectares com a ligeireza que só uma relação difícil com o sistema métrico pode legitimar.

E, como não farão bem ideia do que seja um hectare, e, muito menos, do que sejam milhares de hectares plantados com floresta, logo se aprontam a fazer, para o dia a seguir, levantamentos dos diversos prejuízos.

Citando os Evangelhos: “perdoai-lhes Senhor…”

Entendamo-nos.

O que está em causa não é o habitual discurso de passa culpas. TODOS SOMOS CULPADOS.

O que está em causa não é o trabalho dos Soldados da Paz. Portugal nunca lhes agradecerá o que o seu voluntariado representa para todos nós.

O que está em causa não é a canícula.

O que está em causa é o que não fomos capazes de fazer em muitos e sucessivos Invernos.

Em todos os governos, e eu fiz parte de dois.

É fácil “atirar” com o problema para o Ministério da Administração Interna, só que é preciso voltar ao Inverno.

E, no Inverno, talvez o Ministério da Justiça deva colocar termo às heranças indivisas, às compropriedades, às leiras com área inferior à unidade de cultura, circunstâncias, todas elas, que inviabilizam uma adequada dimensão da propriedade rústica.

No Inverno, talvez o cada vez mais urgente Ministério das Florestas deva desenhar uma política pública coerente, e com meios, para um território que tem um terço do seu território ocupado com floresta e um terço abandonado e a aguardar plantação. E, já agora, que não seja a hoje tão em voga plantação de painéis solares em solos de categoria A.

No Inverno, talvez o Ministério das Florestas, que não temos, e o Ministério das Finanças, que temos, devam pensar como é que vamos pagar aos proprietários florestais, a título de externalidade, a qualidade do ar que respiramos.

No Inverno, os Ministérios que temos e os que não temos, e os da Agricultura e do Ambiente, deverão criar as condições mínimas para que possamos ter explorações agro-florestais, com 30 a 40 hectares, que sustentem as famílias e dêem vida aos nossos territórios.

E, repito, todos somos responsáveis.

Há que terminar com neste caminho bipolar de invernal letargia e estival excitação.

Deixo, apenas, aos leitores uma pequena referência quantitativa. E não é uma percepção perversa com objectivos escondidos como algumas a que temos assistido recentemente.

Portugal importa 73% dos alimentos que consome, com uma floresta que arde e um mundo rural que estiola. E assim fazemos o pleno do descontentamento em todas as épocas do ano.

Advogado e gestor

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