Alguns de nós ainda vivemos um tempo histórico em que Portugal não tinha silly season. Tinha Verão e Inverno, é certo, mas o descanso, o direito a férias, as idas à praia, eram um “luxo “a que só muito poucos acediam. País rural onde o Verão impunha pesados trabalhos agrícolas, país rural onde as crianças eram alimentadas a sopas de cavalo cansado, país rural onde os senhores da terra eram pais incógnitos dos filhos das servas (empregadas), país rural que só tardiamente conheceu os primeiros afloramentos de segurança social. Este país rural acabou. O que não pode deixar de nos preocupar é vermos, tantos anos depois, o ressurgir de uma certa agenda que parece ter origem numa ideia ancestral e determinística de uma sociedade de senhores e servos. O estado de direito fixa regras nas relações entre todos e a dignidade da pessoa humana é o fundamento e o limite à nossa acção e ao nosso discurso. O contrário deste pensamento pode ser avaliado a partir do que se passa na Ucrânia ou em Gaza. É por isso que ouvir um presidente de uma associação empresarial dizer ”Patrões já sabem quando os trabalhadores vão por baixa no próximo ano”, ou ouvir um ministro da República a pronunciar-se, sem pudor nem fundamento, sobre o aleitamento materno, estamos perante uma agenda que parece assentar numa certa ideia de “ajuste de contas” com a história, para não dizer, de regresso ao passado. As irregularidades, os abusos, os desvios, combatem-se com recurso à aplicação da lei e ao poder sancionatório do estado, e só dele. Uma certa direita social, habitual frequentadora de missas, mas que desde a Rerum Novarum e, especialmente, desde o Concilio Vaticano II, não ouve o que vai para lá das ladainhas, parece querer organizar uma agenda que, na sua convicção, mobilizaria toda a direita. Diga-se com clareza. O actual poder em Portugal é cultural e socialmente tributário de um pensamento conservador e tradicionalista e entende que a sua manutenção no poder depende de construir uma agenda que, no entendimento desse poder, agrade e mobilize a extrema-direita. Acontece que a extrema-direita não é nem culta, nem tradicionalista. É económica e social. O que a alimenta, hoje, em Portugal e no mundo, não são as convicções. É, antes, uma certa ideia de marginalização do progresso, de excluídos das vantagens do desenvolvimento, diria mesmo de uma certa pobreza que progressivamente se vai agravando e alargando aos que já tiveram a expectativa de dela se libertarem. O ódio à imigração não tem outra razão que não seja a ideia de que aos imigrantes são dadas vantagens que os portugueses não têm. A silly season é, ou deve ser, propiciadora de pensamentos de longo prazo. Uma sociedade equilibrada, respeitadora dos direitos humanos, fundada no estado de direito e na lei e suportada na dignidade da pessoa humana seria um bom princípio de conversa. As agendas políticas que se colocam, deliberada e conscientemente, na margem destes princípios não prestam um bom serviço à democracia. Advogado e gestor