Ásia Central centralíssima para Trump?

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Por trás das diferenças entre o presidente Donald Trump e o seu antecessor na Casa Branca, Joe Biden, há continuidades na política externa, como ficou evidente há dias quando se realizou em Washington uma cimeira dos Estados Unidos com os países da Ásia Central. Há dois anos, a coincidir com a sessão anual da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, já Biden tinha reunido com os líderes dessas cinco antigas repúblicas soviéticas, consciente do valor geopolítico de países como o Cazaquistão e o Uzbequistão, mas também de Turcomenistão, Quirguistão e Tajiquistão. Trump, porém, foi agora mais além, como provam os acordos assinados, desde investimentos cruzados a compras de aviões americanos, e ainda contratos futuros para mineração, nomeadamente de tungsténio, essencial para a indústria de defesa e não só.

Não se trata, pois, apenas da centralidade em termos de Eurásia desses países, sobretudo do Cazaquistão, nono maior país do mundo, também o maior dos países encravados, e vizinho dos gigantes Rússia e China. Há que ter em conta os recursos minerais e energéticos da Ásia Central. O tungsténio está a ser a estrela nestes dias, mas convém não esquecer que o Cazaquistão é o primeiro produtor mundial de urânio, tão decisivo que a França, quando confrontada com uma junta militar hostil no Níger, tradicional fornecedor, teve que aumentar as importações do país da Ásia Central. O país é também exportador de petróleo e gás.

Nestas três décadas de independência, a liderança cazaque procurou libertar-se de uma influência excessiva russa sem cair numa dependência da China. E se foi com Nursultan Nazarbayev que a Diplomacia Multivectorial nasceu, sob a presidência do Kassym-Jomart Tokayev esta ganhou novo fôlego, motivada pela necessidade de responder às novas tensões internacionais, mas também em consequência do perfil do presidente cazaque, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros e primeiro-ministro, e teve uma carreira diplomática que incluiu formação em Moscovo, passagem pela embaixada em Pequim e chefia da ONU em Genebra. Quantos chefes de Estado serão capazes de conversar com Trump em inglês, com Vladimir Putin em russo e com Xi Jinping em chinês? E, já agora, também com Emmanuel Macron em francês. Para um proponente de uma Diplomacia Multivectorial, admita-se que o presidente cazaque cumpre bem os requisitos, como se viu agora na reunião com Trump, também nos encontros com Putin (com quem marcou logo reunião em Moscovo para discutir cooperação), ou quando assistiu em setembro, em Pequim, ao lado de Xi, ao desfile dos 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial.

“O Cazaquistão pode ter uma boa economia e outras relações com muitas das principais potências globais, não só com a Rússia, mas também com a China, a Índia, a Europa, os Estados Unidos e a Turquia. É um país que tem uma grande quantidade de recursos naturais. Tem também uma força de trabalho muito bem educada”, disse o economista Nouriel Roubini numa participação no Fórum Económico de Astana há dois anos. Para o economista americano, autor de livros como Mega-Ameaças, o Cazaquistão tem vocação para ser média potência.

A favor da imagem do Cazaquistão joga ter renunciado logo no início da independência àquele que era o quarto maior arsenal nuclear, que herdara da União Soviética. Semipalatinsk, no nordeste do país, serviu para quase 500 ensaios nucleares, e ainda hoje a população dessa região cazaque denuncia o impacto histórico da radiação.

Aos laços históricos com a Rússia, que explicam uma forte minoria eslava e a força do russo ao lado do idioma cazaque no dia à dia em cidades com Astana ou Almaty, à relação económica com a China, interessada em renovar a antiga Rota da Seda (foi em Astana, em 2015, que Xi apresentou o projeto Uma Faixa, Uma Rota) e à parceria crescente com os Estados Unidos, que se tornaram o maior investidor no país, há que somar a proximidade com a União Europeia.

Numa entrevista que fiz em Astana, também no Fórum Económico realizado na capital cazaque, José Manuel Durão Barroso, que esteve à frente da UE entre 2004 e 2014, notou que a tal Diplomacia Multivectorial vem de trás: “Foi, aliás, na Comissão Europeia a que eu presidi - e é por isso que me convidam tantas vezes a vir aqui a Astana - que lançámos o Acordo Reforçado de Parceria e Cooperação entre a União Europeia e o Cazaquistão, com o presidente da altura, Nazarbayev, e que já entrou em vigor em 2020. A visão do Cazaquistão - que é, como sabemos, uma antiga república soviética - é a de não estar tão dependente nem da Rússia nem da China e estar cada vez mais perto da Europa”. E “sim”, também dos Estados Unidos, acrescentou na resposta seguinte, o antigo primeiro-ministro português.

Com 20 milhões de habitantes e um território 30 vezes maior do que Portugal, o Cazaquistão é um país túrquico, praticante de um islão moderado, com uma minoria cristã ortodoxa, e no contexto da Diplomacia Multivectorial tem procurado também ser um promotor do diálogo interreligioso. Este ano organizou o VIII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, no qual participou o Patriarca de Moscovo, Cirilo I. Na anterior edição, em 2022, esteve presente o papa Francisco. Que o maior país de maioria muçulmana do mundo seja um Estado laico e fazedor de pontes não passou despercebido à diplomacia americana e daí o anúncio, depois da cimeira Trump-Tokayev, de que o Cazaquistão iria juntar-se aos Acordos de Abraão, iniciativa americana para normalizar as relações entre Israel e o mundo islâmico. Apesar de ter já relações diplomáticas com Israel, ao aderir aos Acordos de Abraão, o Cazaquistão pode dar novo impulso à política de Trump para o Médio Oriente, no pós-Guerra de Gaza, o que será muito valorizado por Washington.

“A localização geográfica do Cazaquistão, o seu potencial económico e o contexto geopolítico moderno posicionam-no como um país de importância estratégica aos olhos da maioria das nações”, afirmou Tokayev no início de 2025, numa entrevista a um jornal cazaque. Biden já tinha percebido essa centralidade da Ásia Central, e em especial do Cazaquistão, a Administração Trump também, e passou claramente à ação. Falta agora uma visita do presidente americano a Astana, que teria, sem dúvida, um grande simbolismo.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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