"Nem tudo o que faz a diferença é visível.” O slogan da primeira campanha pública de recrutamento do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), que noticiamos nesta edição, define bem o que está em causa: reforçar uma das funções mais discretas do Estado num momento em que as ameaças são mais difusas, mais tecnológicas, mais imprevisíveis.Pela primeira vez, vão ser vistos outdoors na rua, cartazes em universidades e anúncios nas redes sociais para atrair candidatos. Um gesto inédito, que dá visibilidade ao desejo demonstrado pelo novo secretário-geral do SIRP, Vítor Sereno, de aproximar os Serviços da sociedade civil, seguindo o caminho de parceiros europeus e que acontece no ano em que o SIS assinala 40 anos de prevenção de ameaças internas e o SIED 30 de inteligência externa. É uma abertura simbólica e uma necessidade. O país viu envelhecer quadros e perder terreno nas competências técnicas num mundo acelerado onde a espionagem já não se faz só com diplomacia e análise, mas com algoritmos, linguística digital, cibersegurança, ciência de dados. O Conselho de Fiscalização do SIRP tem alertado: há “urgência” em recrutar, dificuldades em reter talento altamente qualificado, particularmente nas áreas da informática e da cibersegurança, e um desafio estrutural que compromete a eficácia operacional - a falta de acesso a metadados, que nos coloca atrás de parceiros europeus na deteção precoce de ameaças. O CFSIRP apela a que seja retomado o processo de revisão constitucional para colmatar esta lacuna. “Tal medida colocaria Portugal em linha com os padrões europeus de segurança, sem abdicar das salvaguardas democráticas essenciais”, escreve no seu último relatório anual. Portugal continua a ser o único país europeu que proíbe os serviços de informações de fazer escutas.O sinal de abertura dado pela estratégia de Vítor Sereno, um embaixador de carreira, pode ser este um decisivo passo para que, tal como acontece em grandes agências internacionais, se comece também a desclassificar certos dossiês e a contar as histórias de operações que distinguiram os nossos espiões, os mais secretos heróis. Caso contrário, a memória coletiva tende a ficar com as recordações mais negativas, boa parte das vezes, injustamente.Num tempo de guerras híbridas, campanhas de desinformação, cibercrime e extremismos violentos, democratizar o recrutamento para funções sensíveis é sabedoria. Mas slogans não bastam. O país precisa de meios, tecnologia, legislação ajustada, transparência suficiente para gerar confiança; segurança como condição da liberdade, e fiscalização democrática como garantia dessa segurança.Mas há outras preocupações que não podem ser ignoradas. Ao mesmo tempo que o Estado pede aos cidadãos para servirem o país com inteligência, há figuras públicas, uma das quais o líder do segundo partido mais votado nas últimas eleições legislativas e candidato à Presidência da República, que abandonaram debates em estúdios televisivos, exaltadas, ameaçando tornar banal um espetáculo degradante.Noutro tempo, este tipo de cenas seria excecional, sinal de fraqueza argumentativa ou falha de moderação. Hoje, arrisca-se a que se torne formato. Basta uma provocação, um tom acima, um aparte infeliz - e lá vai o microfone pousado na mesa, a cadeira a recuar e o abandono do debate. Não importa aqui discutir quem provocou quem, ou quem tem razão. Importa o que estamos a perder. Quando a política e os media descem a esse nível, o público percebe-o e afasta-se. Primeiro do programa, depois da política. E, por fim, da própria conversa pública - onde a democracia vive.Não se trata de exigir polidez artificial ou unanimidade. O debate pode e deve ser vigoroso. Mas a liberdade de expressão não exclui a responsabilidade de escutar. Uma entrevista não é um ringue; um painel televisivo não é um bar ao final da noite.O que tem um assunto a ver com o outro? Reforçar os serviços de informações é reforçar a capacidade do Estado proteger a democracia. Mas preservar a democracia exige mais do que inteligência operacional: exige inteligência cívica. Requer instituições fortes e conversas fortes no conteúdo, não no tom. Requer um espaço público saudável. A qualidade da democracia é o fio condutor.Se servir Portugal é uma missão silenciosa para alguns, deve ser também uma missão civilizada e digna para todos. “Nem tudo o que faz a diferença precisa de ser ruidoso. Às vezes, basta ser inteligente” - talvez esta seja a frase que ainda falta colocar num outdoor.