Seria Padre António Vieira construtivista bem antes de Piaget?

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Começou a época dos exames. Todos os anos a comunicação social dedica largos minutos na televisão e muitos carateres nos jornais às questões educativas, especialmente em dois momentos: a publicação dos rankings e a época dos exames. Deixemos de lado os "rankings", os quais, por não terem em conta muitas e diversas variáveis que contaminam os resultados, não podem ser levados a sério, e centremo-nos nos exames. Além das entrevistas aos jovens, antes e depois das provas, é também frequente ouvirem-se conselhos aos estudantes -- como lidar com a ansiedade, como estudar de forma eficaz (distribuir o tempo de estudo, fazer resumos, etc.), sem que haja uma discussão séria sobre como se aprende ou quais são as aprendizagens mais relevantes para o futuro... quando muito ouve-se às vezes, por parte de figuras mediáticas e/ou supostos intelectuais, muitos deles com escassos conhecimentos sobre educação, discutir o chamado "eduquês". Este termo pretende traduzir a ideia nublosa de que a educação, atualmente, é só brincadeira e projetos, não se aprendendo nada de jeito nem se exigindo qualquer esforço aos estudantes.

A forma mais frequente de ensinar continua a ter por base o que poderíamos designar como modelo transmissivo e que se caracteriza pelas seguintes etapas: um professor expõe um conteúdo, o aluno estuda ou exercita e depois são testados os conhecimentos. Subjacente a este modelo está a ideia de que o conhecimento deriva necessariamente do ambiente, sendo a tarefa do ensino a de proporcionar uma representação clara e compreensível do objeto de conhecimento que torna mais fácil a assimilação desse conhecimento. A tarefa do aluno é desenvolver uma representação interna do conhecimento apresentado. A maneira como o faz pode ser por imitação e exercitação ou até eventualmente, envolver, por exemplo, debates. Nesta perspetiva de ensino e da aprendizagem os conceitos e as experiências anteriores do aluno, o significado intrínseco atribuído à aprendizagem ou o valor que lhe dá não surgem como particularmente relevantes. No entanto, são precisamente estes aspetos que permitem diferenciar entre autómatos que recitam mecanicamente o conhecimento memorizado e seres pensantes que compreendem a informação adquirida.

Padre António Vieira no seu sermão da Sexagésima diz o seguinte a propósito da evolução dos crentes: "Para uma alma se converter por meio de um sermão (...) há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento. (...) As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento."

Esta citação permite ilustrar um Padre António Vieira que aparentemente advoga um estilo de pregar mais próxima do chamado modelo construtivista. Na perspetiva deste modelo o que se aprende implica um processo de construção ativo pelo aluno, sendo influenciado por experiência prévias ("as razões nascem do entendimento, as alheias são pegadas à memória"). Na lógica construtivista e socio-construtivista enfatiza-se a importância da participação social (a explicitação do conhecimento para o outro, o debate, a realização conjunta de tarefas), a disponibilidade de ajuda e instruções que os alunos sejam capazes de compreender, a necessidade de tarefas mais significativas antes da evolução para tarefas mais formais. O ensino implicaria a resolução de problemas, tarefas colaborativas e ensino recíproco (por exemplo, trabalhar a compreensão de um texto a partir da discussão do texto, passagem a passagem, entre professores e alunos).

São estas estratégias de ensino e aprendizagem que muitas vezes aparecem sob a designação de "eduquês" e que na realidade estão menos presentes nas nossas escolas do que as primeiras. Uma coisa é certa, é tarefa do professor transformar a informação num conhecimento que não se desvaneça logo a seguir ao exame. E aprender implica necessariamente compreender como já dizia o grande Padre António Viera, "com o concurso da graça de Deus, alumiando."

Professora do Ispa - Instituto Universitário e escritora

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