Quando o descontentamento cresce e a confiança nas instituições desaba no nosso país, regressa o apelo à “honestidade”. Quer-se um líder que “ponha ordem”, um governante “austero” e imune à tentação, capaz de disciplinar um país “desarrumado”. É o eco de um Salazar, ainda presente nas conversas de café e nos discursos de quem confunde moral com virtude política. O mito da honestidade é o último refúgio de um país que nunca quis enfrentar a corrupção com verdade.Salazar construiu essa imagem com precisão. Não fumava, não bebia, vivia modestamente e apresentava-se como o guardião da pátria e da moral cristã. Mas, enquanto cultivava a pose de asceta, o Estado Novo assentava numa teia de favores e cumplicidades. Grandes empresas beneficiavam de monopólios e concessões em troca de fidelidade política. O moralismo era o verniz de um sistema corrupto que confundia lealdade com mérito e subordinação com patriotismo.A censura cuidava do resto. Sem escândalos nem denúncias, a corrupção tornava-se invisível. E foi essa invisibilidade que cimentou o mito, em que o povo acreditou que, se nada se sabia, era porque nada havia. Assim nasceu a nostalgia da “ordem sem corrupção”, que regressa sempre que o país se cansa de escândalos e desilusões.Setenta anos depois, o erro repete-se. O combate à corrupção continua refém do discurso moral, quando deveria ser técnico e transparente. É mais fácil proclamar “tolerância zero” do que reformar o Estado. E é aqui que surge o novo mito da modernização tecnológica.O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) trouxe a promessa de digitalizar a administração pública e torná-la mais eficiente e transparente. Contudo, a reforma do Estado ficou prisioneira dos indicadores de Bruxelas. O PRR, que deveria ser um instrumento de modernização estrutural, corre o risco de se tornar apenas um guião apressado do calendário político. A obsessão com metas e prazos cria uma burocracia de resultados imediatos sem escrutínio, sem avaliação de impacto, nem transformação efetiva e duradoura. Digitalizam-se serviços sem reformar procedimentos, acumulam-se plataformas sem rever regras e confunde-se investimento público com progresso. O Estado corre para cumprir relatórios e fotografias oficiais, mas continua lento, opaco e capturado pelos gigantes tecnológicos.Reformar o Estado não é apenas fazer listas de intenções a partir de consultas aos ministérios, nem replicar programas como as “Mil Medidas de Modernização Administrativa” de Cavaco Silva ou os vários SIMPLEX que atravessaram governos. É preciso pensar transversalmente, governar a mudança com coragem e enfrentar as causas e os problemas reais que alimentam o populismo.O desafio é usar a tecnologia para abrir o Estado e não para o esconder. As ferramentas digitais devem rastrear despesas, cruzar contratos e expor redes de influência. Mas isso exige coragem política e vontade de enfrentar os interesses que vivem da opacidade e do labirinto burocrático.Combater a corrupção com verdade exige mais do que moralizar o discurso, pois implica transformar a impunidade em prestação de contas. A tecnologia deve servir o escrutínio público e não a autopromoção governamental.O mito da honestidade de Salazar sobrevive porque é cómodo e oferece a fantasia de um passado “puro” e o alívio de um presente irresponsável. Hoje, o risco é substituí-lo pelo mito da “modernização” que tudo resolve. Nem a moral do padre, nem o discurso do programador salvarão o Estado se este continuar a fugir da verdade.O futuro da democracia portuguesa dependerá menos da austeridade dos governantes e mais da transparência das suas contas e das suas decisões. Enquanto o país confundir virtude com aparência, a corrupção continuará a ser o mais moderno dos nossos problemas antigos. Especialista em governação eletrónica