Em 2019, reclamei junto da então Rodoviária de Lisboa dos desmandos de uma dupla de fiscais que encontrei ao seu serviço..O caso começou com uma infracção: duas passageiras, uma delas com uma criança de colo, foram apanhadas a viajar sem título de transporte..Diante da situação, ambas reconheceram o erro e se prontificaram a pagar a viagem. O motorista sugeriu inclusivamente que os fiscais cobrassem mais do que um bilhete a cada uma das infractoras, como forma de punição..Todo o ambiente ali era de conciliação, mas a arrogância e intransigência prevaleceu. Em menos de nada, sem alternativa de sair porta fora, nem direito a uma única palavra de explicação, eu e os outros mais de 20 passageiros ficámos parados e trancados dentro do autocarro, sob o controlo de um dos fiscais..Enquanto isso, o outro saiu em busca de apoio policial, algo perceptível apenas e só por dedução: das janelas, vi-o dirigir-se para uma superfície comercial, onde, à porta, estavam agentes em serviço gratificado..Os minutos foram passando, a impaciência dentro do autocarro aumentando, e, quando vi o fiscal regressar sozinho, imaginei que o assunto se resolveria sem intervenção policial..Só que não! Em vez de retomar a marcha em direcção ao destino, a viatura deu meia-volta para o sentido oposto..Contestei, pedi uma explicação, e exigi que me dissessem para onde me estavam a levar contra a minha vontade..Mas de nada valeu ter expressado o meu protesto e vontade de sair dali, porque, em vez de seguir na direcção que escolhi, tive de fazer um desvio até à esquadra mais próxima, onde os vigilantes saíram com as tais passageiras..Foi a primeira e - até ver - única vez que assisti a uma situação dessas, apesar de ter testemunhado outros casos semelhantes, no sentido de envolverem passageiros, fiscais, e a ausência de título de transporte..Por “coincidência”, todas as situações que tinha observado anteriormente envolveram pessoas brancas, e foram resolvidas, na maioria dos casos, com uma simples admoestação. Lembro-me apenas de uma ocasião em que o “pica” optou pela multa, ainda assim sem causar alarido..Também por “coincidência”, o caso em que me vi presa num autocarro contra a minha vontade, e desviada da minha rota, envolveu mulheres da comunidade cigana..Convém assinalar que em nenhum momento as duas passageiras apanhadas em infracção representaram uma ameaça à integridade física dos presentes. Pelo contrário, procuraram sanar o problema. Eu vi, ouvi, ninguém me contou..Mas a resposta à queixa que apresentei apresenta uma narrativa bem diferente da minha. Embora não tenha como reportar as palavras das infractoras, sei perfeitamente que, ao contrário do que me transmitiram, a equipa de fiscalização nunca comunicou nada aos restantes passageiros, nem abriu as portas da frente para que pudéssemos sair..Portanto, e à falta de outros elementos, o caso esbarrou no clássico “diz-que-disse”, ainda que sem me dispensar de uma reprimenda. Aos olhos de quem me leu, estava a ser exagerada e talvez até arrogante, por recorrer à palavra sequestro..Na ocasião, explicaram-me que “os sequestros envolvem sempre vítimas e infelizmente em alguns casos mortais, e são perpetrados por criminosos, pessoas em desequilíbrio emocional e, em alguns casos até, por terroristas, e habitualmente não se efectuam sequestros para esquadras de polícia, infelizmente para os sequestrados”..Retorqui que o Código Penal Português inclui o sequestro nos “Crimes contra a liberdade pessoal”, reconhecendo que o mesmo poderá ser praticado “mediante simulação de autoridade pública, ou por funcionário com grave abuso de autoridade”..A história assalta-me à memória enquanto leio as últimas sobre o julgamento de Cláudia Simões, que, em 2020, teve de receber assistência hospitalar depois de ter sido transportada para a Esquadra do Casal de São Brás, na Amadora. Tudo porque a filha, então com 7 anos, viajava num autocarro sem bilhete..Cláudia garante que explicou a situação ao motorista, e que estava a pedir ao filho, por telefone, que se dirigisse para a paragem de destino com o passe da criança, que tinha ficado esquecido em casa..A proposta não terá convencido o condutor, que decidiu chamar a polícia. Apesar de existir um vídeo do agente Carlos Canha a agredir Cláudia na via pública, e de, horas depois de ter sido conduzida para a esquadra, a mesma ter dado entrada nas Urgências do Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) com a face deformada por hematomas extensos, o Ministério Público (MP) entende que o polícia deve ser ilibado..Pouco importa que, na mesma noite e na mesma esquadra, outras pessoas garantam ter sido agredidas pelo mesmo agente. Para o MP é crível que Carlos Canha tenha avançado sobre essas pessoas, e que Cláudia se tenha magoado sozinha..Sabemos assim que, contra factos, afinal há argumentos: ela mostrou em tribunal ser “arrogante” e “exagerada”, enquanto os outros ofendidos foram humildes e demonstraram ausência de revolta.