Segurança urbana, regras claras e prestação de contas

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O Diário de Notícias tem vindo a expor uma controvérsia sobre as competências da Polícia Municipal de Lisboa (PML), após o presidente da Câmara, Carlos Moedas, ter ordenado que os agentes municipais passassem a efetuar detenções de suspeitos de crimes. Tal ordem revelou-se ilegal, como indicou um parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR), homologado pelo Governo, após alguns meses de o ter recebido.

Durante esse tempo, a atuação da PML suscitou dúvidas sérias, sem quaisquer esclarecimentos por parte da Câmara Municipal, da PSP, da PML ou do Ministério da Administração Interna, apesar de insistentemente questionados pela jornalista Fernanda Câncio.

A Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) confirmou na semana passada, a abertura de uma averiguação a propósito de situações que demonstravam essa questionável mudança de paradigma, transmitidas em reportagens de um canal televisivo.

Nesta quinta-feira, a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou finalmente que foi instaurado um inquérito criminal, com o objetivo de apurar a legalidade da atuação da PML retratada nas reportagens, nas quais protagonizou ações encobertas e detenções musculadas de vendedores ambulantes e entrou dissimuladamente em residências privadas alegadamente usadas como restaurantes clandestinos.

Vários especialistas em segurança interna consideram que há indícios de ilegalidade nestas operações, e até possíveis crimes como abuso de poder, usurpação de funções e introdução em lugar vedado ao público.

A PSP, por sua vez, que tem poder disciplinar sobre os agentes da PML, perante tais suspeitas de agentes dos seus quadros, depois de muita persistência do DN respondeu laconicamente. Afirma estar a acompanhar com atenção o processo instaurado pela IGAI, mas remete para a autonomia daquela inspeção-geral e declara que não fará mais comentários.

Esta falta de transparência – marcada por ordens não escrutinadas e silêncio institucional – gera confusão pública e expõe agentes a riscos jurídicos.

A lei portuguesa é clara: as polícias municipais são forças administrativas, sem competências de investigação criminal ou detenção fora dos casos de flagrante delito em crimes públicos ou semipúblicos puníveis com pena de prisão.

Que uma orientação tão sensível tenha sido emitida, previsivelmente executada e, apesar de ter sido declarada contra a lei, continuar a ser defendida pelo responsável da maior cidade do país, com a cumplicidade proporcionada pelo silêncio ruidoso de quem tem a obrigação de defender a legalidade é deveras preocupante.

Carlos Moedas tem dado prioridade ao tema da segurança em Lisboa, apostando numa política de reforço da autoridade da Polícia Municipal, com enfoque na segurança de proximidade e no combate à pequena criminalidade.

Embora com alarmismo não benéfico para a imagem da cidade e de algumas contradições, como denunciar falta de agentes na PML e depois querer aumentar-lhes as competências, essa estratégia tem méritos e responde a preocupações legítimas da população.

Mas quando se confunde eficácia com eventual abuso de poder, ou quando se atropela o quadro legal para “mostrar trabalho”, o resultado pode ser contraproducente. A confiança do público não se ganha à força. Ganha-se com regras claras, prestação de contas e respeito pelas competências de cada entidade.

Também por explicar está o anunciado “plano especial de segurança para Lisboa” que Moedas prometeu preparar após uma reunião, a oito de julho, com a ministra da Administração Interna.

Maria Lúcia Amaral – que apesar de ter desempenhado funções de Provedora de Justiça também não tomou uma posição sobre todos estes públicos atropelos.

O anúncio foi feito em tom de urgência, mas até hoje nada se conhece do seu conteúdo, objetivos, calendarização ou articulação com a PSP – a quem legalmente compete a segurança pública da cidade.

Ao ignorar o trabalho consolidado desta força de segurança e ao não prestar contas sobre medidas anunciadas, a câmara produz a perceção de que a política de segurança se tornou mais espetáculo do que verdadeira preocupação.

No seu discurso de tomada de posse, o presidente da câmara afirmou: “Um juiz americano, Louis Brandeis, dizia que ‘a luz do sol é o melhor desinfetante’. Se formos abertos e transparentes expomos as nossas feridas, é certo. Mas essa é a única maneira de as curar. A transparência e a redução da burocracia são os melhores remédios contra os atrasos, os critérios pouco claros ou inconstantes, as decisões mal justificadas e, evidentemente, os melhores remédios contra a corrupção.”

A declaração é irrepreensível. Mas à luz dos acontecimentos recentes, ganha um tom amargo: é precisamente pela ausência dessa “luz do sol” que o episódio da Polícia Municipal se tornou num caso embaraçoso para todos os envolvidos.

A Constituição da República consagra o direito à informação e à administração aberta. A transparência não é um favor que os responsáveis políticos fazem aos cidadãos ou ao jornalistas. É uma obrigação legal e uma condição de legitimidade. Quando falta, surgem rumores, desinformação e desconfiança. Quando existe, promove-se a integridade, o escrutínio e a participação informada.

Instituições abertas à sociedade são mais eficazes e menos propensas ao erro. A opacidade, pelo contrário, encobre más decisões, enfraquece a governação e afasta os cidadãos da vida pública. O episódio que envolveu a PML mostra o custo da ausência de informação clara e o risco de se tomarem decisões com impacto sobre direitos fundamentais sem que o público seja informado ou consultado. Uma administração transparente é mais responsável, mais democrática e, no fim, mais respeitada.

Vale sublinhar ainda o papel da imprensa livre e da sociedade civil neste ecossistema de transparência. Jornalistas atuam muitas vezes como catalisadores da prestação de contas. Da mesma forma, organizações não-governamentais e cidadãos empenhados utilizam as leis de acesso à informação para expor falhas, propor melhorias e garantir que o interesse público prevaleça sobre interesses obscuros.

Como recorda a Constituição, “a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” e “os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração e de acesso aos arquivos e registos administrativos, nos termos da lei” Ou seja, a Administração Pública existe para servir os cidadãos, não para se proteger do seu olhar. A transparência não é um luxo – é o que garante que a democracia funciona mesmo quando ninguém está a ver.

PS. Já depois do fecho deste texto na edição impressa, Carlos Moedas respondeu o seguinte: "Estou e estarei sempre do lado da Policia Municipal e de todas as forças de segurança. A Polícia Municipal pauta a sua atuação pelos princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade. Continuarei sempre a incentivar qualquer força de segurança a fazer cumprir a lei e a impor a ordem em nome da proteção de todos os cidadãos". Moedas devia ler o parecer da PGR e não dar ouvidos a quem o está a aconselhar mal.

Diretora Adjunta do Diário de Notícias

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