Este é um combate do país, nós estamos em guerra e temos de vencer esta guerra.” As palavras do primeiro-ministro Luís Montenegro, perante os incêndios que voltaram a devastar o país, têm a força de uma imagem bélica. Mas, se estamos em guerra, a pergunta é inevitável: onde está o general?Portugal continua a enfrentar os incêndios como um fenómeno extremo, mas sem um comando e controlo unificado à altura da ameaça. Os relatórios técnicos e as análises de especialistas já o salientaram no passado. O problema não está apenas nos meios - mesmo quando o dispositivo é o maior de sempre, com mais de 14 mil operacionais, 3162 viaturas e 72 meios aéreos em prontidão -, mas sim na ausência de uma cadeia de comando eficaz, nacional e centralizada.Em 2024, uma equipa de peritos australianos - que tinha cá estado em 2022 e 2023 a observar a organização do combate aos incêndios - caiu em cheio nos gigantescos fogos de setembro desse ano. Eis as notas de alguém, com conhecimento de causa, depois de três anos: “Cada brigada voluntária de bombeiros é gerida pelo município local; por isso, foi relatado que o presidente da câmara ou o capitão local tem muita influência no controlo das operações de combate a incêndios. Esta situação resultará na implementação de prioridades estratégicas localizadas, em vez de nacionais, e constitui um desvio e uma quebra fundamentais dos princípios do Sistema de Gestão de Incidentes utilizado internacionalmente.”O mesmo relatório é categórico ao afirmar que a solução passa por liderança forte e centralizada: “É necessária uma liderança forte, ao mais alto nível, para iniciar e implementar as mudanças significativas que são necessárias na gestão de incêndios em Portugal.” E deixa um aviso: “Portugal já dispõe de recursos consideráveis para o combate a incêndios (tanto terrestres, como aéreos), mas aumentar o foco no combate a incêndios não resolverá o problema. Nunca haverá bombeiros suficientes para combater grandes incêndios florestais/rurais, como os que ocorreram em setembro de 2024.”As críticas externas encontram eco em avaliações internas. No relatório dos peritos nacionais sobre os incêndios de 2022, entre os quais o da Serra da Estrela, com contributos de militares destacados que entendem bem de cadeias de comando, lê-se sobre o combate a grandes fogos: “Não se identifica qual a clara e inequívoca atribuição de responsabilidades e prioridades de uso desses mesmos meios e capacidades; (…) quem analisa e apoia a tomada de decisão por parte do Comando Nacional de Emergência e Proteção Civil (…) não aparenta deter a iniciativa disciplinada de os propor.”O mesmo texto nota ainda: “Em todo o sistema de combate - e de resto, também nas outras fases - existe alguma falta de disciplina e de responsabilização, no cumprimento das decisões, das ordens, das tarefas e das manobras planeadas. É necessário haver mais fiscalização e monitorização de todas as atividades, com estímulos positivos - mais do que com penalizações -, para motivar, reconhecer e premiar os bons desempenhos, para melhorar o sistema.”Concluindo: “Embora se reconheça a necessidade de envolver mais meios humanos e materiais no Sistema, questiona-se a falta de especialização e complementaridade e critica-se a opção de multiplicar recursos em diferentes entidades, com a mesma finalidade, em alternativa a melhorar e reforçar o que já existe e se faz bem. Questiona-se o emprego de grande número de meios, por vezes com deficiente preparação ou liderança, no teatro de operações (TO). Nem sempre o número elevado de recursos no TO correspondeu a uma grande capacidade de combate. Foi referido que por vezes se preferia dispor de menos meios, mas mais bem preparados, motivados e comandados.”Estas constatações foram sequer lidas pelos decisores políticos? Se estamos, de facto, em guerra, não bastam os operacionais heróicos na linha da frente. É no comando que se ganha ou se perde a batalha. E esta guerra tem muitas batalhas. Sem liderança unificada, sem clarificação de responsabilidades, sem uma estratégia nacional que se sobreponha a interesses locais, Portugal continuará condenado a arder, ano após ano, apesar de todos os planos e dispositivos.Neste contexto, ganha peso a discussão sobre o papel das Forças Armadas. A Constituição da República prevê expressamente o seu emprego em missões de proteção civil. No apoio logístico - desde o transporte pesado até ao abastecimento de refeições e à engenharia de campo - poderiam constituir um reforço de grande escala e permanente, ainda que complementar. No entanto, esse potencial continua pouco explorado.O presidente da Liga de Bombeiros Portugueses, António Nunes, também já veio dizer que “falta um rosto, como em qualquer guerra, que diga, para o bem ou para o mal, as decisões que são tomadas sistematicamente, a nível nacional”.Esse “rosto”, teoricamente, numa situação normal, seria o do presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, José Manuel Moura, cuja presença não foi ainda notada. Da ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral, a sua ausência até pode ser mais profícua.Já não estamos numa situação normal. Numa altura em que a área ardida já ultrapassou, em muito, a de 2017 e recordando que nesse ano boa parte das vítimas mortais foi em outubro, tal como os piores momentos do ano passado foram em setembro, é preciso reverter este bloqueio, ultrapassando interesses locais e corporativos.Convém recordar que quando ocorreram os tumultos em Lisboa, após a morte de Odair Moniz, o primeiro-ministro surgiu em conferência de imprensa, em horário nobre, ladeado pelos chefes da PJ, da PSP, da GNR e pelas ministras da Administração Interna e da Justiça. Não seria tempo de fazer o mesmo? Com os respetivos atores, perante a verdadeira guerra que são os incêndios rurais? Mostrar os rostos de quem é responsável e pode contribuir para as soluções.A pergunta mantém-se, cada vez mais urgente: se estamos em guerra, onde está o general?